Folha de S. Paulo: Influenciadores desmistificam a vida com HIV nas redes sociais
“Nunca passou pela minha cabeça que eu poderia ser alguém vivendo com HIV. Nunca me testei, porque achava que isso nunca seria uma realidade para mim”, diz Vitor Ramos, 31, assistente de desenvolvimento agrícola, diagnosticado com HIV há seis anos.
Após descobrir a doença tardiamente e sofrer várias sequelas, Vitor mostra a seus quase 50 mil seguidores no Instagram que é possível ter uma vida saudável com o vírus, sem romantizações.
Apesar da sorofobia —discriminação contra pessoas com HIV—, ele tenta romper os estigmas que ainda cercam a condição —estigmas que ele mesmo já teve.
“Eu tinha um preconceito muito grande na minha cabeça. Achava que HIV tinha fisionomia, que era uma pessoa magra, debilitada, e que eu nunca ia me relacionar com alguém assim”, afirma.
Um ano e meio antes do diagnóstico, ele apresentou os primeiros sintomas e chegou a procurar um médico. A infecção por HIV foi descartada logo de cara, porque o médico acreditava que “homem não tem essa doença”, presumindo que Vitor fosse heterossexual, o que eliminaria a possibilidade de um diagnóstico positivo.
Saiu do consultório com receita e tratamento completo para doença de Crohn, uma inflamação crônica no sistema digestivo. Mas os problemas pioraram e a negligência médica só retardou o início da terapia adequada para o HIV.
Nesse período, perdeu muito peso, sentiu cansaço extremo, até que perdeu o movimento das pernas.
Entre as possíveis doenças, que incluíam AVC (acidente vascular cerebral) e câncer, o melhor diagnóstico seria o de HIV, segundo a equipe médica.
A contagem de linfócitos CD4 de Vitor era de apenas 2, bem abaixo do normal, que varia entre 500 e 1.500, indicando baixa imunidade e um estágio avançado de aids.
Durante a internação, ele enfrentou complicações graves, como neurotoxoplasmose e citomegalovírus ocular —doenças oportunistas associadas ao HIV—, que causaram perda auditiva, estrabismo e problemas motores nas pernas.
O apoio da família o ajudou no processo de aceitação e recuperação, mas sentia falta de exemplos de pessoas que haviam passado pelo mesmo que ele.
“Eu nunca tive dificuldade em falar que vivo com HIV, porque eu aprendi a me amar independentemente do vírus. Foi aí que comecei a criar conteúdos”, diz.
Jéssica Mattar, 33, também desmistifica os tabus sobre o HIV, especialmente os relacionados à maternidade, para os mais de 49 mil seguidores que tem no Instagram.
“Eu não queria que as pessoas se sentissem sozinhas ou como se fossem uma aberração”, conta.
Ela só descobriu a infecção por HIV em 2021, após uma hemorragia intensa causada por uma síndrome do ovário policístico (SOP).
Mãe de quatro filhos —duas meninas, de 11 e 14 anos, nascidas antes do diagnóstico, e dois bebês, de um ano e sete meses e de quatro meses, nascidos após o diagnóstico—, ela compartilha que mulheres que vivem com HIV e têm carga viral indetectável não transmitem o vírus aos filhos durante a gravidez.
Assim como Vitor, os médicos de Jéssica suspeitaram de outras doenças, como leucemia e púrpura. Com os problemas de saúde persistindo, Jéssica fez o teste de HIV, que confirmou a infecção.
“Eu tinha muito medo de fazer esse exame, mas uma enfermeira me disse que era um medo que poderia me matar. Hoje, digo para os meus seguidores que não tem que ter medo e fugir do teste, porque o diagnóstico te salva”, diz.
Nos vídeos, ela também mostra sua relação com o marido, uma pessoa sem HIV —relacionamento conhecido como sorodiferente.
“Depois de um tempo de namoro, muitos acabam confiando no parceiro e deixando de usar camisinha. Mas não se deve confiar em ninguém, porque não é o tempo que vale, é o exame feito. Ambos precisam fazer o exame juntos, porque assim você cuida de você e do parceiro. Isso é uma atitude bonita, não vergonhosa”, afirma.
Para o influenciador Lucas Raniel, 32, diagnosticado aos 21, um das maiores preocupações para quem descobre a infecção são os relacionamentos.
“A tentativa de construção de afeto é sempre uma angústia. As pessoas se preocupam como vão ser vistas, acolhidas, se vão conseguir ter relações, ter filhos e ser amadas”, diz. “Isso gera dúvidas sobre contar do HIV, como contar, quando contar, e como o outro vai reagir.”
Com mais de 106 mil seguidores no Instagram, ele atua como comunicador e palestrante desde 2015, abordando temas relacionados a prevenção, sexo seguro e saúde pública. Lucas também é voluntário na ONG Multiverso, que desenvolve ações de testagem e redução de danos no centro e na periferia da cidade de São Paulo.
A fama e a notoriedade nas redes não blindam o influencer de episódios de sorofobia. Lucas já enfrentou reações negativas, como afastamento de parceiros e agressão física ao compartilhar sua condição.
“Pode parecer que o block ou o sumiço de alguém não me afetam, mas, no fundo, isso machuca. Perdem uma oportunidade de conhecer uma pessoa por falta de informação”, afirma.
Uma acusação feita em grupo do WhatsApp, de que estaria espalhando o vírus para outras pessoas em Ribeirão Preto, onde morava, deram a motivação para fazer o primeiro vídeo.
“Acho que um dos maiores desafios é fazer com que as pessoas entendam que estamos falando sobre ciência e saúde, não sobre incentivo à infecção”, explica. “O que eu quero é que as pessoas entendam que dá para viver bem com HIV. Eu não sou o vírus. Existe um Lucas além disso.”
“Acho que um dos maiores desafios é fazer com que as pessoas entendam que estamos falando sobre ciência e saúde, não sobre incentivo à infecção”, disse Lucas Raniel, influenciador.
Sabrina Luz, 27, também tem usado suas plataformas digitais para disseminar informações corretas e apoiar outras pessoas na mesma situação.
“Receber o diagnóstico é um choque, mas não deve ser visto como o fim da vida. Foi a partir daí que eu percebi a força que tenho para enfrentar preconceitos diariamente”, diz.
O infectologista Álvaro Costa, que trabalha no Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo) e do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, afirma que esses influenciadores têm um papel importante na disseminação de informações.
“Com o tratamento adequado, uma pessoa com HIV pode ter uma expectativa de vida igual à de uma pessoa sem o vírus. Isso precisa ser mais divulgado”, explica.
Álvaro menciona o conceito de “indetectável = intransmissível” (I=I). O termo significa que pessoas que vivem com HIV com carga viral indetectável, graças ao uso de medicamentos antirretrovirais, não transmitem o vírus durante a atividade sexual. “É uma conquista que muda vidas”, afirma.
A evolução dos tratamentos antirretrovirais reduziu os efeitos colaterais e a quantidade de comprimidos necessários.
Outra conquista foi a PrEP (Profilaxia Pré-exposição), que previne a infecção por HIV e é disponibilizada pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
“Precisamos disseminar também para mulheres e heterossexuais”, diz.
Fonte: Folha de S. Paulo