VivaBem: ‘Vacina contra HIV é desafio extraordinário’, diz pesquisador da Unifesp
Uma pesquisa coordenada pelo infectologista Ricardo Sobhie Diaz, da Unifesp, se mostra promissora em uma possível cura do HIV. Um homem de São Paulo passou 78 semanas com carga viral indetectável, sendo a primeira pessoa a atingir esse resultado apenas com uso de medicamentos e terapia celular. Outros casos pelo mundo tiveram êxito após transplante de medula óssea, algo difícil de replicar para todos que vivem com a infecção.
De forma notável, o estudo mostrou o impacto de tratar o HIV: o participante teve sua idade epigenética reduzida em cerca de 15 anos (de 42,8 anos no início do estudo para 29,2 anos na semana 48) e diminuiu o risco de mortalidade.
Mas ainda não se fala em cura, sendo necessário repetir estudos em mais pessoas. A pesquisa relata que esse paciente teve a primeira carga viral detectável de HIV na semana 84, após interrupção do tratamento antirretroviral (necessária e feita com segurança para avaliar as intervenções do estudo). Ele reiniciou a terapia antirretroviral na semana 88, seguindo os critérios de retomada.
Em conversa com VivaBem no 24º Congresso Brasileiro de Infectologia, Diaz deu mais detalhes da pesquisa, falou sobre os desafios de encontrar uma cura e uma vacina preventiva para o HIV.
VivaBem: Temos ouvido falar em cura funcional do HIV. O que seria isso?
Ricardo: A gente não usa mais o termo cura funcional. Antes, falava que tinha dois tipos de cura: uma que você se livra do vírus de forma completa e outra que você controla o vírus. A cura funcional era a que você controlava. Por alguma orientação, isso se juntou e agora a gente chama de remissão sustentada sem antirretrovirais, significando que a pessoa pode ficar sem o tratamento convencional e não ter o vírus detectado no sangue dela.
O paradigma da cura do HIV é que você elimina a resposta do corpo ao vírus. Por exemplo, a gente cura hepatite C hoje em dia, mas sempre vai ter um sinal de que a pessoa teve hepatite C. A gente consegue curar o HIV com transplante de medula, mas os anticorpos somem.
Tem pessoas que controlam o vírus naturalmente, chamadas de controladores de elite, é 1%. A carga viral é indetectável, e elas podem até perder o controle ao longo do tempo, mas têm a resposta do corpo mostrando que o vírus está ali.
Uma pessoa que se cura do HIV com transplante de medula, por exemplo, pode doar sangue, porque você não vai saber que ela teve, porque os testes são negativos. Foi o que aconteceu com o paciente de São Paulo. Ele funcionou não como um controlador de elite, mas exatamente como as pessoas que foram curadas com transplante de medula, porque os anticorpos dele foram diminuindo e acabaram, e a imunidade celular dele também acabou.
Dá para dizer que não existe mais o vírus no corpo dele?
A única forma de saber se existe o vírus no corpo da pessoa ou não é, depois de um estudo de cura, interromper o tratamento. Mas a gente tem as melhores evidências de que o vírus não existe na hora que dosa os anticorpos, porque isso a gente aprendeu quando curou o cara com transplante de medula. Esse é o melhor que a gente pode fazer para falar que uma pessoa está sem o vírus completamente.
Qual é o próximo passo da pesquisa?
Primeiro, a gente vai ter que descobrir por que ele conseguiu isso e os outros não, para partir para a medicina de precisão. Talvez tenha alguma coisa relacionada com ele mesmo. Segundo, a gente vai expandir o estudo para um número maior de pessoas para poder confirmar que o que a gente achou é algo válido e está no caminho certo.
Nosso estudo exploratório tinha seis braços, cinco pessoas em cada. A gente viu mais do que segurança, tinha evidência de que a coisa estava funcionando. Agora, a gente amplia um pouco mais, não muito, para mostrar que a gente pode reproduzir a segurança e a eficácia.
A evidência é que os melhores resultados foram no braço que teve todas as intervenções. A gente tinha um grupo controle, que fez tratamento comum, e fomos testando outras intervenções isoladamente e de forma associada, que eram quatro: intensificação de tratamento, medicamento para acordar o vírus, medicamento para matar a célula que tem o vírus e uma vacina, a terapia celular. O próximo estudo vai usar o que teve resultado melhor.
Quais eram as barreiras para eliminar o vírus quando vocês começaram a pensar na pesquisa, em 2012?
Já naquela época, a gente percebia que você trata a pessoa, para o tratamento, e o vírus volta, porque o tratamento não é forte o suficiente. Uma das barreiras é que o vírus continua se multiplicando e, para isso, a gente intensificou o tratamento em um dos braços. Outra barreira é que o tratamento só vai matar os vírus que estão se multiplicando, não o que está quietinho em estado de latência.
Mas esse vírus vai acordando de tempos em tempos, e isso é uma coisa boa, porque o remédio mata ele. A gente já fez um modelo matemático mostrando que se tratar direitinho, a quantidade de vírus ia diminuir a ponto de zerar, ia curar a pessoa, mas ia demorar 80 anos. No nosso estudo, usamos o reversor de latência, com dois medicamentos para acordar o vírus.
Outra coisa é que o vírus fica escondido em um lugar que o remédio não chega, chamado de santuário. É onde as células estão tão juntas que não passa água, mas passa a célula da pessoa. A gente fez uma terapia celular, que é a estratégia de fazer com que a própria célula da pessoa atravesse essa barreira tão fechadinha.
E o que falta para falar em cura de fato?
A gente precisa fazer estudo para tentar curar as pessoas de uma forma reprodutiva e aumentar essa escala. A gente não vai conseguir nunca uma escala para curar a pessoa que vive com HIV fazendo transplante de medula.
A gente tem que ter outra alternativa que passe por estratégias mais inovadoras, que diminuam a quantidade do vírus no corpo. Se você diminuir muito, cura a pessoa. Se você diminuir muito, mas não conseguir curar, você já deu um benefício para ela, que é criar um ambiente mais saudável no corpo.
No estudo, os participantes ficaram um período sem qualquer tratamento para ver o resultado das intervenções. Qual é o risco disso?
A gente tenta fazer isso de forma muito segura. Tem um monte de estudo mostrando as formas seguras. Por exemplo, fazer exame de carga viral a cada três semanas. O risco é a pessoa perder todo o benefício do tratamento, transmitir o vírus e ter um processo inflamatório que possa causar prejuízo não só para a imunidade, mas para o corpo como um todo. Não é uma coisa sem risco, mas ela parece muito segura se você tomar os devidos cuidados.
Qual é a possibilidade de uma vacina preventiva contra HIV?
Acho muito difícil, é um desafio extraordinário, nunca deu certo. Tudo que a gente aprendeu e toda a estrutura que montou para a vacina de HIV, conseguiu fazer vacina para covid, mas não do HIV.
A vacina é como a arte imitando a vida. A vida é: você tem catapora e fica imune. Se você entrar em contato com o vírus da catapora de novo, não vai ter. A arte é a vacina: você dá um pedacinho do vírus ou um vírus meio bobo, e o corpo monta uma resposta e te protege quando entrar em contato com o vírus.
Mas nenhuma vacina protege 100%. Nunca teve ninguém que pegou HIV e eliminou espontaneamente. O desafio é fazer a arte ser melhor que a vida, porque a vida já não deu certo.
Tem uma vacina nova, de RNA mensageiro, que parece ser diferente, mas também não acho que vai proteger todo mundo se funcionar. Pena que os estudos pararam, por enquanto, porque ela deu urticária nas pessoas.
E por que é tão difícil?
O vírus consegue se evadir do sistema imune, mas não só. O HIV, de certa forma, faz com que você tenha um mecanismo de tolerância. Mas o ponto é que, além de não conseguir eliminar espontaneamente, você não consegue fazer uma defesa que elimine o vírus que entra em contato com você. Nunca conseguimos. Às vezes o placebo é melhor do que a vacina.
O caminho, então, é reduzir a carga viral em vez de eliminar totalmente?
A gente nunca conseguiu fazer prevenção do HIV mudando o comportamento das pessoas. Nem é certo mudar o comportamento delas. A gente inventou a vacina, mas não temos. Inventamos a PrEP e a PEP, a gente faz circuncisão, e essas estratégias funcionam muito bem, principalmente a PrEP.
Um dos caminhos para viver num mundo sem HIV é juntar todas essas estratégias, não deixar mãe transmitir para filho, tratar o maior número de pessoas para não ficarem transmitindo o vírus. Além disso, tem que curar as pessoas. Onde a vacina entra nisso não sabemos ainda, a gente está pesquisando, mas em algum lugar ela pode entrar.
Qual é o cenário hoje da aids avançada?
Quando tem Aids avançada, é um prejuízo, porque a pessoa já envelheceu muito mais rápido do que os outros. É esse processo que a gente tenta reverter. No contexto ideal, você tem que tratar o mais cedo possível, porque o prejuízo é cumulativo e uma das coisas que podem acontecer é reduzir a expectativa de vida.
A pessoa com Aids avançada mostra que a gente falhou na estratégia primordial, que é testar e fazer o tratamento. Tem que tomar cuidado com esse risco porque, mesmo com o tratamento, ela pode morrer. Ela pode estar com o vírus há tanto tempo que nunca vai recuperar completamente a imunidade.
Há novas estratégias para isso?
A gente pensa em como mitigar esse dano com medicamentos para reduzir a inflamação, estimular o sistema imune, mas a pessoa já envelheceu.
Na hora que você pega pessoas da mesma idade com e sem HIV, percebe que as com HIV têm menos cálcio no osso, mais cálcio nas artérias, mais disfunção do coração, mais atrofia cerebral, mais perda de memória, mais depressão, mais insuficiência renal, mais insuficiência hepática, mais fragilidade, mais câncer. Isso é coisa de velho.
Como evitar essa progressão?
Trabalhar o estigma, preconceito e discriminação. Todo mundo tem, a pessoa que vive com HIV tem. A melhor coisa seria a gente trabalhar com isso, porque às vezes o que impede a pessoa de se testar, além do medo, é o preconceito.
Tomar remédio não é fácil para algumas pessoas, a gente entende, e a PrEP é sensacional, mas só funciona se a pessoa tomar. A gente fica inventando estratégias: dar injeção, criar um comprimido para tomar uma vez a cada duas semanas, ou a cada semana, a cada mês. Mas como ela vai se lembrar de tomar um comprimido a cada mês e não se colocar em risco?
Aí tem a PEP, que é a pílula do dia seguinte, que é uma estratégia boa porque você nunca sabe exatamente quando vai estar exposto, mas sempre sabe quando foi exposto.
É algo para se tomar com frequência?
O quanto precisar. O marcador é que, se você está tomando muita profilaxia pós-exposição, provavelmente é um candidato para PrEP. Mas tem que tomar o quanto precisar, porque a alternativa é muito ruim, é ter HIV.