UOL: ‘Planejaram meu velório’: remédio contra HIV está no SUS por causa dela
Nair Brito, 62, descobriu que era HIV positivo em 1992. E, se hoje existe tratamento gratuito no SUS para a doença, é por causa dela. Quando estava muito doente no hospital, Nair entrou na Justiça pelo direito de receber o antirretroviral sem custos, e ganhou. Sua iniciativa incentivou muitos outros a fazerem o mesmo.
“Eu cheguei a me deitar no meio da avenida Paulista em uma manifestação. Não tinha medo. Quando você não tem mais nada a perder, acredita que aquilo dá visibilidade. O importante era que as pessoas vissem que precisávamos de remédio, assistência e solidariedade”, disse em entrevista a Universa.
O movimento fez com que o então presidente José Sarney criasse uma lei tornando obrigatória essa distribuição de medicamentos pelo SUS. Nair queria que a lei levasse seu nome — mas essa é outra luta.
Para a reportagem, ela recordou o caminho de perdas e dores que percorreu para conseguir estar viva há mais de 30 anos com o vírus.
Descoberta do diagnóstico
“Em 1989, me separei. Como tenho um filho, me senti pronta para começar a me relacionar novamente após três anos. E foi em uma dessas ficadas, em que transei sem preservativo, que contraí o vírus do HIV.
Eu sabia que tinha uma epidemia acontecendo, mas a sensação era de que estava muito longe de mim. Que estava nos Estados Unidos, no universo de pessoas LGBTQIAP+, com as prostitutas e usuários de droga. Era isso que ouvíamos. Como mulher heterossexual, essa epidemia não me dizia respeito.
Descobri depois que comecei a me sentir mal e fui ao médico. Era como se estivesse com rubéola: muita febre, pele vermelha e cheia de bolinhas. Como lidava com crianças sempre em situações precárias e com diversos problemas de pele, achei que tinha pegado algo delas.
No consultório, o médico pediu para eu fazer o teste de HIV. Não achei nada demais. Nem questionei. Eu tinha me relacionado com três ou quatro pessoas após meu casamento e sabia que tinha transado sem camisinha. No meu subconsciente, entendi, naquele momento, que havia fios soltos na minha história que poderiam ter levado à contaminação.
Fiz o exame e abri o resultado no estacionamento do laboratório. Deu positivo. Naquele momento, eu não tinha nenhuma rede de apoio para entender o que significava. A primeira coisa que pensei foi: ‘Vou morrer’. Tudo o que eu sabia sobre esse vírus é que as pessoas morriam, e com muito sofrimento.
Eu precisava ir para casa, buscar meu filho na escola, fazer jantar para ele. Não entendia muito bem, tinha medo de contaminá-lo. Paralisei. Não consegui mais tocar em sua roupa, sua comida. Foi um dos momentos mais dramáticos da minha vida.
Rede de apoio e primeiros passos
Uma amiga me ajudou a buscar médicos, encontrar caminhos. Quando tudo o que você espera é a morte, tenta viver. Isso é inerente ao ser humano.
Comecei a procurar médicos. Fui paciente de Drauzio Varella por um longo período. Ele era muito doce, muito humano. Mas sabia-se pouco sobre o vírus, tudo era novo. E não tínhamos muito acesso a medicamentos e tratamentos. Na época, usavam um medicamento que também era usado para câncer.
Existiam alguns grupos que já estavam nesse ativismo há anos. O primeiro que participei foi o GAPA (Grupo de Apoio à Prevenção à Aids). Mas eu achava o trabalho um pouco assistencialista, sabe? E havia pessoas sendo abandonadas pela família ou perdendo empregos, que precisavam de ajuda.
Eu participei de muitos outros. No ‘Mulheres pela Vida’, por exemplo, começamos a nos articular, fazer reuniões, encontros, rodas de conversa. Percebemos que não bastava sobreviver, a gente precisava lutar. Lutar por remédio, por atendimento digno, por políticas públicas. E também lutar contra o machismo — porque, para mulher vivendo com HIV, a violência é dupla.
A dor da perda
Era muito comum — e terrível— perder amigos. Tínhamos um grupo de teatro e saíamos pelos municípios e escolas falando sobre preconceito. Em um ano, o elenco todo morreu.
Para conseguir enterrar todos que precisavam, tínhamos que nos dividir, pois a maioria não tinha família. E pensávamos: ‘Qual vai ser o meu momento?’.
Todos os amigos que perdi foram marcantes. Mas lembro especialmente de dois casos: Carla e Cláudia. A Carla vivia com a irmã em situação precária. Ajudava como podia. Um dia a levei para o hospital. Dois dias depois, ela morreu. Tive que reconhecer o corpo no IML, abrir a gaveta e olhar para ela.
A Cláudia, uma travesti, cuidava de todo mundo. Foi perseguida politicamente. Depois morou comigo, viramos muito amigas. Um dia me perguntou: ‘Será que é para eu virar Cláudio, por isso que está acontecendo tudo isso comigo?’. Pouco tempo depois, ela morreu, sozinha. Não tinha ninguém. Fui eu e outra amiga enterrá-la. Essa solidão familiar me marcou profundamente.
A luta pelo medicamento que virou direito
Eu sobrevivia a trancos e barrancos, mas não parava. Já era ativista, focada nos direitos das mulheres vivendo com HIV. Fui a uma conferência no Canadá que falava de um medicamento novo. Antes disso, tinha estado na Tailândia e visto mulheres muito doentes. Seis meses depois, reencontrei as mesmas mulheres no Canadá e elas estavam bem.
Fiquei impressionada. Quando acabou a conferência, voltei ao Brasil e disse: ‘Eu quero esse medicamento’. Foi o primeiro momento em que senti esperança.
Em uma das vezes em que fiquei muito doente, tinha um fungo no pulmão e não conseguia respirar. Quase tive um colapso. Quando cheguei ao hospital, a saturação estava muito baixa. O CD4, que é o marcador das células de defesa, estava em oito —o normal é mil.
Procurei uma advogada que conhecia pelos grupos de apoio e pedi ajuda para conseguir o medicamento. Ela entrou com uma ação judicial. Enquanto isso, fui internada. Estava muito mal. Meu companheiro já estava se preparando para meu velório.
No mesmo momento, a revista ‘IstoÉ’ publicou uma matéria sobre a conferência e os medicamentos novos contra o HIV. O juiz que julgou meu caso estava com a revista na mesa quando minha advogada bateu à sua porta pedindo a liberação da droga. Ele entendeu tudo e deu liminar obrigando o Estado a me fornecer o medicamento, com multa diária.
O Programa Estadual de Aids acatou e providenciou. Isso fez eco. Todo mundo começou a entrar com ações, inclusive na América Latina.
Foram ganhando, um a um, o direito ao remédio. Hoje, 900 mil pessoas no Brasil tomam medicamentos contra o HIV gratuitamente. Na época, o presidente José Sarney usou isso politicamente e criou a Lei Sarney, em novembro de 1996. Ela determina que esses medicamentos têm que ser distribuídos sem custos para quem vive com HIV pelo SUS.
Eu sempre digo: deveria se chamar Lei Nair Brito. Não por vaidade, mas porque é a história legítima de uma mulher morrendo e lutando pelos seus direitos.
Busca pela cura
Hoje, minha luta é por cura. Sim, há tratamento. Mas eu sei que a cura é possível. Só que não há interesse global, porque os remédios alimentam milhões e milhões de dólares em lucro. É perverso.
Eu tenho que sobreviver tomando tantos medicamentos porque alguém tem interesse que eu os tome. O custo mensal para me manter viva com antirretrovirais é de cerca de R$ 5.800. Imagine 900 mil pessoas no Brasil. É muito dinheiro em jogo.
Por isso, hoje, meu ativismo é para dizer: queremos a cura. Cura já.”


