O Globo: Injeção que previne o HIV: estudo inédito mostra que droga de última geração poderia custar R$ 140; farmacêutica cobra R$ 156 mil

Um novo estudo na revista científica The Lancet estimou que o medicamento injetável a cada seis meses que previne em quase 100% a infecção pelo HIV, o lenacapavir, poderia ser vendido por apenas 25 dólares (o equivalente a cerca de R$ 140 na cotação atual) para uma pessoa a cada ano.

No entanto, a farmacêutica responsável pelo remédio, a Gilead Sciences, cobra mais de 28 mil dólares por pessoa a cada ano nos Estados Unidos (cerca de R$ 156 mil na cotação atual), ou seja, 1.120 vezes mais caro que o valor para produzi-lo. O medicamento foi aprovado nos EUA como estratégia de prevenção ao HIV, mas ainda não tem aval da Anvisa no Brasil.

“Estamos em um momento em que poderíamos ver a eliminação das infecções por HIV, mas isso só será possível se o medicamento for acessível e amplamente disponível”, defende Andrew Hill, pesquisador da Universidade de Liverpool, no Reino Unido, e um dos autores do estudo, em nota.

O lenacapavir foi aprovado pela primeira vez no mundo para prevenção ao HIV pela agência reguladora americana em junho. No país, ele é vendido com o nome comercial de Yeztugo. No último dia 14, a Organização Mundial da Saúde (OMS) também passou a recomendar o remédio para evitar a infecção pelo vírus, no que chamou de “uma ação política histórica que poderia ajudar a remodelar a resposta global ao HIV”.

— Enquanto uma vacina contra o HIV continua fora de alcance, o lenacapavir é a melhor alternativa: um antirretroviral de longa duração que, em testes, demonstrou prevenir quase todas as infecções por HIV entre pessoas em risco — disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, no lançamento das novas diretrizes.

O remédio é considerado inovador por ser injetável e demandar apenas duas aplicações ao ano para garantir uma eficácia de quase 100%. Hoje, já existe uma estratégia de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) disponível, inclusive no Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2017. Porém, ela envolve comprimidos orais que precisam ser tomados diariamente. Eles também reduzem o risco de uma infecção a quase zero, porém o fato de ser um tratamento diário dificulta a adesão.

O lenacapavir já era vendido, mas com o nome comercial de Sunlenca e aprovado apenas para o tratamento de casos de HIV multirresistentes, não como estratégia de prevenção para pessoas não infectadas. Mas, devido aos desafios na PrEP oral, pesquisadores têm buscado alternativas injetáveis de longa duração e decidiram testar o medicamento.

Até então, o mais avançado a oferecer uma prevenção duradoura era o cabotegravir, da GSK, que precisa ser aplicado a cada dois meses. Ele chegou a ser aprovado pela Anvisa em junho do ano passado, mas também tem custo elevado. Agora, o lenacapavir surge como uma estratégia promissora por promover a alta eficácia com somente uma aplicação a cada semestre.

Um dos problemas para o impacto nos números da doença, no entanto, é o preço. Para o professor Andrew Grulich, do Instituto Kirby de pesquisa para o HIV, o custo de 28 mil dólares é “absolutamente insano” e faz com que nenhum sistema de saúde no mundo consiga implementar o lenacapavir.

O novo estudo na Lancet, apoiado pela campanha “Make Medicines Affordable” (Torne os Medicamentos Acessíveis), analisou os preços atuais dos principais insumos do lenacapavir e projetou o custo do princípio ativo farmacêutico usando as rotas de síntese mais eficientes.

Considerando a formulação e uma margem de lucro razoável, os pesquisadores estimaram que o remédio poderia ser fabricado e distribuído por valores de 35 a 46 dólares ao ano por pessoa no caso de uma produção em larga escala de dois milhões de tratamentos anuais. Se chegar a 5 a 10 milhões, o valor pode cair para 25 dólares.

Em outubro, a Gilead anunciou acordos com seis fabricantes para produzir e vender versões genéricas do medicamento, que é protegido por patente, em 120 países de alta incidência de HIV e com recursos limitados, principalmente os de média e baixa renda. A comercialização só poderá ser feita após aval das agências reguladoras dos locais.

O Brasil ficou de fora, assim como outros países importantes da América do Sul, Ásia e Europa, o que foi criticado pelos autores do novo estudo. Hill diz que os acordos excluíram “alguns dos países com as maiores taxas de novas infecções”.

“Cientificamente, o lenacapavir é a coisa mais próxima que temos de uma vacina contra o HIV. Mas sem acesso, essa descoberta corre o risco de se tornar uma tragédia em saúde pública, e não um triunfo”, diz.

Eficácia de quase 100%

Um primeiro estudo clínico com o lenacapavir, chamado de Purpose-1, analisou o tratamento entre 5,3 mil mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero atribuído a elas ao nascerem) na África do Sul e na Uganda. Nenhuma das que receberam o medicamento foram infectadas durante cerca de dois anos, enquanto 55 diagnósticos foram observados nos grupos que usaram a PrEP oral. A eficácia das injeções foi considerada de 100%.

Outro estudo mais diverso, o Purpose-2, englobou 3,3 mil participantes de diferentes gêneros, como homens cis e pessoas trans, e de diferentes etnias em 88 centros de pesquisa no Peru, Brasil, Argentina, México, África do Sul, Tailândia e Estados Unidos. No final do estudo, apenas dois casos de HIV foram identificados entre os que receberam o lenacapavir, e 9 entre os que tomavam PrEP oral.

Comparando com a incidência do HIV em uma amostra separada de 4,6 pessoas da população geral, que não receberam os medicamentos, os resultados mostraram uma eficácia de 96% associada às injeções semestrais. Além disso, confirmou que a estratégia é mais eficaz que os comprimidos. Ambos os trabalhos foram publicados na revista científica New England Journal of Medicine (NEJM).

Por que a injeção não é uma vacina?

Embora o remédio seja uma injeção para prevenir uma doença infecciosa, o lenacapavir não é uma vacina. Isso porque, assim como a PrEP em comprimidos, ele não induz o sistema imunológico a produzir anticorpos e células de defesa contra o HIV. Ele é um antiviral que bloqueia os “caminhos” que o vírus utiliza para se replicar e, para isso, precisa permanecer em constante circulação no organismo.

De forma mais detalhada, uma vacina é feita com o material genético de um vírus ou bactéria para que o sistema imune o reconheça a partir daquele fragmento e, com isso, passe a produzir as defesas contra ele. Dessa forma, simula a exposição àquele agente infeccioso para gerar a resposta imune, que se mantém ao longo do tempo.

Já no caso da PrEP, é um remédio que não induz uma resposta ativa do sistema imunológico. Ele combate o vírus diretamente, sendo usado também para tratar pessoas que já vivem com a infecção. Nessa estratégia, o objetivo é manter a droga em constante circulação no sangue para, se a pessoa entrar em contato com o HIV, ela já estar presente e rapidamente atacá-lo, antes mesmo que ele se instale e cause a infecção.

Por isso, caso a administração da PrEP seja interrompida, a proteção desaparece. Já as vacinas, por outro lado, podem até demandar novas doses de reforço para elevar a resposta do sistema imune ao longo do tempo, mas a proteção em algum nível se mantém duradoura. Não existem vacinas aprovadas contra o HIV no mundo.

Fonte: O Globo