O Globo: ‘A PrEP não está chegando às pessoas mais vulneráveis ao HIV, como os jovens’, diz pesquisadora da Fiocruz
Havia expectativa no ar este ano na principal conferência de HIV/Aids do mundo, realizada no mês passado, em Ruanda. Por um lado, os cortes de verbas para o combate ao vírus promovidos pelo governo Trump ameaçavam programas do mundo inteiro, principalmente da África Subsaariana. Na outra ponta, a da esperança, a chegada das versões injetáveis dos remédios da profilaxia pré-exposição (PrEP) carregava a promessa de maior adesão de usuários e impacto profundo no controle da infecção.
Na delegação brasileira, um nome sobressaía: o da infectologista brasileira Beatriz Grinsztejn, atual presidente da International Aids Society (IAS), associação mundial que promove o encontro. Com mais de 25 anos de trajetória nesse campo, a especialista já acompanhou de perto muitos avanços e entraves na história da epidemia.
Na entrevista a seguir, a chefe do Laboratório de Pesquisa Clínica em IST e HIV/Aids do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz) fala sobre as novas drogas para prevenir a infecção, a eterna busca por uma vacina e os acertos e limitações do programa brasileiro de PrEP.
Durante muito tempo falou-se sobre a tentativa de cura ou de pesquisas de vacina como o grande foco nas buscas pela erradicação do HIV. Recentemente, esses esforços parecem ter se concentrado na PrEP. É isso mesmo?
O termo erradicação é extremamente complexo em termos epidemiológicos. E está fora do horizonte. O que a gente busca de fato, e que é viável, é eliminar o HIV como um problema de saúde pública, conforme as metas da OMS para 2030. Isso significa reduzir significativamente o número de novas infecções e mortes relacionadas ao HIV. E a gente continua avançando nisso nos últimos anos com várias estratégias, como testar e tratar, como o acesso universal à terapia antirretroviral e a PrEP. Além disso, é importante destacar que as buscas por uma cura e pela vacina se mantêm.
Mas a impressão é de que a PrEP saltou em importância recentemente, principalmente com as novas versões injetáveis.
A PrEP é extremamente importante. Mas, isoladamente, ela não vai nos levar a eliminação do HIV como um problema de saúde pública. Isso tem que vir num contexto da testagem ampliada, do acesso ao tratamento antirretroviral. A gente ainda tem no mundo 9,2 milhões de pessoas que vivem com HIV e que não estão em tratamento. Isso corresponde a mais ou menos 25% das pessoas que vivem com HIV. São várias estratégias combinadas, que variam conforme o momento da vida da pessoa.
A corrida por uma vacina continua aquecida, então?
As pesquisas continuam. Porque o mundo vive crises de financiamento, e para se manter uma política de PrEP é preciso ter dinheiro, investimentos para os insumos continuarem disponíveis. Na perspectiva de saúde pública, o acesso a uma vacina é muito diferente disso.
Uma pesquisa publicada na Science recentemente voltou a trazer esperança ao campo das vacinas contra o HIV. Os imunizantes testados induziram anticorpos em 80% dos casos usando a tecnologia de RNA mensageiro. Essa abordagem é promissora?
Esses estudos em humanos e macacos oferecem novas pistas na longa busca por uma vacina para o HIV. Os autores destacaram que se trata da primeira vez que uma vacina contra o HIV gera anticorpos capazes de neutralizar a infecção em uma porcentagem significativa de sujeitos. No entanto, as vacinas não estimularam anticorpos amplamente protetores como o necessário para uma vacina ser bem-sucedida.
O programa de PrEP brasileiro já tem oito anos de existência. Como ele impactou nossa realidade?
Nesse quesito, o Brasil foi novamente pioneiro, assim como havia sido lá atrás, na década de 1990, em relação ao acesso universal à terapia de retroviral. Temos acesso universal à PrEP, qualquer pessoa que se identificar com a necessidade de usar pode procurar o Sistema Único de Saúde (SUS). Na América Latina, somos o país com o maior número de usuários de PrEP. Desde o início da oferta no SUS, 274.216 pessoas iniciaram o uso. Hoje, 66%, ou 128.573 pessoas, estão em uso ativo, mas 65 mil descontinuaram.
Qual é a estratégia do programa?
É uma política que se estende ao país inteiro, com 1.170 pontos de dispensação. As estratégias são diferentes conforme as cidades ou os estados. No município do Rio de Janeiro, por exemplo, um avanço muito importante que se deu foi o acesso por meio do programa de atenção primária e de saúde da família, além dos serviços especializados. Isso levou à expansão do programa. A cidade de São Paulo trabalha de forma diferente, com outras abordagens de extremo sucesso, como a estação de prevenção no metrô, que funciona até as 23h com máquinas tipo “vending machines” onde você pode retirar a PrEP ou a PEP (o tratamento pós-exposição ao vírus).
E quais são as lacunas, onde dá para melhorar?
É importante ressaltar que a maior parte dos usuários de PrEP não é de jovens entre 18 a 24 anos, eles só representam 10% do total. E o maior número de novas infecções pelo HIV no Brasil acontece justamente nessa faixa. Então, a gente ainda não tem a PrEP chegando às pessoas sob maior vulnerabilidade. Também é preocupante a taxa de descontinuação, que se dá mais entre os indivíduos pardos e pretos e com menor escolaridade.
Como explicar o fato de os mais jovens não serem tão atingidos pelo programa?
A gente tem uma questão muito séria de conservadorismo no nosso país. Bancadas conservadoras impedem que a educação sexual nas escolas possa acontecer. Então, não temos de fato um conhecimento sendo disseminado entre os jovens sobre a saúde sexual, sobre a prevenção primária do HIV e de outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Temos hoje uma grave epidemia de sífilis no Brasil, por exemplo.
No início do programa, se falava mais de públicos mais vulneráveis ao contato com o vírus, como os homens que fazem sexo com homens e as profissionais de sexo. Isso mudou? Ainda se ouve falar pouco da inclusão de mulheres.
Em tese, a PrEP está disponível para qualquer pessoa que tenha interesse em usar. Então, não existe uma restrição ao uso entre mulheres, pelo contrário. Mas ele chega a elas de forma ainda muito limitada. O conhecimento sobre PrEP — e agora entra de novo o fator educação — entre mulheres cis é relativamente baixo, inclusive entre aquelas que se encontram sob maior vulnerabilidade. Além disso, existem barreiras estruturais, culturais, institucionais que dificultam o acesso. O próprio machismo estrutural nos serviços de saúde faz com que os profissionais muitas vezes não abordem a sexualidade das mulheres abertamente e deixem de considerar que elas potencialmente podem estar expostas ao HIV.
Precisamos então ampliar o entendimento das pessoas sobre a PrEP?
Temos que diversificar as narrativas em relação aos seus benefícios, explicar que ela não precisa ser uma solução aplicada para a vida inteira da pessoa, pode muito bem ser usada em determinados momentos de maior vulnerabilidade. E que ela não deve ser ofertada apenas como uma resposta a situações de risco, mas também como parte da promoção de saúde sexual e da autonomia das mulheres.
As PrEPs injetáveis estão avançando no mundo, com doses mais espaçadas e em tese uma adesão maior. Estamos preparados para receber o cabotegravir (profilaxia com injeções a cada dois meses)?
Fizemos um grande estudo de implementação no Brasil que incluiu 1.200 pessoas, entre homens que fazem sexo com homens, pessoas trans, pessoas não binárias. Ele foi realizado em seis serviços de saúde pública do SUS. Os dados iniciais foram apresentados no início deste ano e houve uma excelente aceitação do medicamento: 83% das pessoas a quem foi ele foi ofertado junto com outras opções escolheram o cabotegravir. O estudo foi feito justamente para a população entre 18 e 30 anos, que é onde acontecem a maior número de infecções.
O que falta para ele ser oferecido?
Ele já está registrado na Anvisa, mas não foi incorporado ao SUS por questões de inadequação dos preços. Ainda não se chegou ainda a uma negociação viável de preços para que o Brasil possa de fato incorporar essa tecnologia.
E o nosso estudo de implementação do lenacapavir ((PrEP com duas injeções por ano)? Quando virá?
Ele já está pronto e deve ser iniciado no segundo semestre deste ano. Tem financiamento da Unitaid (iniciativa global para HIV/Aids, malária e tuberculose) a apoio irrestrito do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz. Vamos fazer em oito centros, para o mesmo público do cabotegravir: homens que fazem sexo com homens, população trans e pessoas não binárias.
A Gilead, do lenacapavir, e a ViiV, fabricante do cabotegravir, fizeram acordos de produção de genéricos em alguns países com o Medicines Patent Pool (organização da ONU para garantir acesso a medicamentos essenciais). Quantos países serão contemplados? Isso inclui o Brasil?
São 136 territórios cobertos pela licença do cabotegravir, 120 países da Gilead. Praticamente toda América Latina está fora desse acordo. O Brasil, então, não tá coberto por nenhum dos dois.
Teremos que pagar o preço cheio?
Essas são negociações que se dão com o Ministério da Saúde. A gente espera que as empresas tenham sensibilidade para uma negociação com preços justos.
Qual será o impacto de uma eventual incorporação dessas PrEPs injetáveis nos programas brasileiros?
Hoje, temos dificuldade na expansão da PrEP e entre os mais jovens. E a gente vê que a persistência das pessoas no programa é pior entre as pessoas menos escolarizadas, mais pobres, e entre pardos e pretos. Essas novas estratégias com drogas de longa ação podem ser úteis não só para aumentar o interesse na PReP como melhorar a persistência.
Esses injetáveis acabarão com a PrEP de comprimido?
Essas drogas são fundamentais para aumentar o interesse e o portfólio. Cada forma de PrEP pode ser adequada a um momento da vida do indivíduo. Não existe uma única solução. A gente viu com os contraceptivos como novas formas que surgiram ao longo do tempo ampliaram muito o uso em geral. Sempre haverá um espaço para a PrEP oral, que é muito mais barata e é extremamente eficaz.
Vivemos um momento de incerteza na economia global com as taxações do governo Trump e os desmontes de programas de saúde. Como isso afeta o quadro de HIV/Aids no Brasil?
As políticas do atual governo americano de cortes de verbas, de extinção da USAID e de restrições ao PEPFAR (iniciativa dos EUA lançada em 2003 para destinar verbas a programas contra HIV/Aids no mundo todo) não atingem nem acesso, nem o tratamento, nem a prevenção do HIV no Brasil. Existe uma concepção equivocada de que recebemos algum tipo de auxílio externo para manutenção de seus serviços, mas não. Tudo é oferecido pelo nosso SUS. Entretanto, em outras regiões do planeta e para outros países, a situação é muito diferente.
Quem será mais afetado?
Os países da África Subsaariana foram os mais atingidos com a extinção da USAID e com os cortes substanciais feitos no PEPFAR. E isso é extremamente grave porque esses países tinham uma dependência da iniciativa que correspondia em alguns casos a 80% do montante de seus programas de prevenção. É dramático.
No longo prazo, como os cortes impactam o cenário?
O PEPFAR foi um programa de extremo sucesso, ele salvou 26 bilhões de vidas. Mas é impossível a gente imaginar que ele fosse continuar exatamente como estava para todo sempre. Adaptações são necessárias. O que é inconcebível é executar cortes de forma radical, sem preparação nenhuma. Mas é esperado que os países ao longo do tempo adquiram propriedade sobre os seus programas e não fiquem numa dependência externa tão violenta. Do lado mais esperançoso, mesmo o corte não tendo sido algo bom, dá para ver no cenário uma movimentação que rearranje um pouco essa dinâmica e crie um multilateralismo dos programas de HIV no mundo.
Segundo o último relatório da Unaids, o Brasil atingiu duas das três metas de 95%. Em 2024, 96% das pessoas que viviam com HIV conheciam seu diagnóstico e 95% das pessoas em tratamento estavam com a carga viral suprimida. Porém, só 82% das pessoas que sabem que vivem com HIV estavam em tratamento antirretroviral. O que falta para atingirmos esse objetivo?
A questão tem a ver com acesso. Embora a gente tenha um programa de acesso universal, quando falamos do individual as coisas se complicam. O HIV é um dos elementos na vida das pessoas, e para muitas está longe de ser uma prioridade. Quando se trata de pessoas menos escolarizadas, mais empobrecidas, em situações de autoestigma, com dificuldades na aceitação do diagnóstico, tudo isso afasta. Muitas vezes, os serviços de saúde não são amigáveis. Também temos uma situação importante que é o desengajamento do cuidado, quando a pessoa que já começou a se tratar parou. Isso se acentuou durante a pandemia e no pós-pandemia. Essas pessoas não necessariamente já voltaram aos serviços.
O Brasil já foi referência no mundo de programa de HIV/Aids. Isso se mantém?
O Brasil ainda ocupa esse lugar, mais do que nunca. Num momento em que a gente vê esses cortes e essa enorme dependência de países para manter os seus programas, temos uma situação única, de autonomia. Somos um exemplo de integração de políticas contra o HIV.
No ano que vem, a conferência de HIV/Aids da IAS será no Brasil. Qual é a expectativa?
Será importantíssimo. Esperamos trazer 10 mil pessoas para o Rio de Janeiro. É muito importante trazer os olhares para a situação da América Latina, que é uma das únicas regiões no mundo onde o número de novas infecções pelo HIV continua a crescer. Entre 2010 e 2024, tivemos um aumento de 13% nas novas infecções pelo HIV, principalmente nas populações mais vulnerabilizadas, de jovens, pardos e pretos e pessoas com menos escolaridade.
Foto: Domingos Peixoto