Número de presos com HIV atinge maior patamar em 10 anos mesmo com queda na população carcerária da região de Campinas, destaca G1

Dados obtidos pelo g1 via Lei de Acesso à Informação mostram que o número de pessoas presas convivendo com HIV cresceu na região de Campinas (SP). Embora a população privada de liberdade tenha atingido o menor patamar em 2024, o total de infectados chegou ao índice mais alto em 10 anos, com 210 casos.Os dados são da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) e também indicam um aumento na ocorrência de outras infecções sexualmente transmissíveis (IST). A sífilis e as hepatites virais atingiram os maiores números em uma década entre os anos de 2023 e 2024 (confira mais detalhes no gráfico à seguir).

Para um especialista ouvido pela reportagem, o crescimento pode ser atribuído a três hipóteses, incluindo um reflexo do aumento de casos na população em geral, a alta na transmissão dentro das unidades prisionais e um maior número de testes – o que é defendido pela SAP, como mostra a nota completa abaixo.

O levantamento considera as 11 unidades prisionais da região, incluindo Alas de Regime Semiaberto (Arsa), Centros de Ressocialização, Centros de Detenção Provisória (CDP), Centros de Progressão Penitenciária (CPP) e Penitenciárias. São elas:

  • Centro de Ressocialização Masculino de Sumaré + Arsa
  • Centro de Ressocialização de Mogi Mirim + Arsa
  • CDP Americana
  • CDP Campinas
  • CDP Hortolândia
  • CPP Hortolândia
  • CPP Campinas
  • Penitenciária II Hortolândia
  • Penitenciária III Hortolândia
  • Penitenciária Feminina de Campinas
  • Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu

O menor índice de pessoas com HIV dentro das unidades foi registrado em 2018, com 10,3 casos a cada mil presos. Agora, a taxa é 12,7. Em números absolutos, até então, a maior quantia havia sido registrada em 2019, com 183 – naquele ano, eram 13.628 presos e agora são 11.115.

Entre os casos de sífilis, o total em 2023 foi o mais elevado da década, com 182, seguido de 2024, com 181. O indicador é 103% maior que o observado 10 anos antes, sendo que agora a população presa está 8,6% menor. Já as hepatite cresceram em quatro vezes no último ano em relação a 2014.

O médico infectologista Julio Croda, da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), lembra que, como não existe o hábito de consumo de drogas de forma injetável no Brasil – o que normalmente se torna uma forma de transmissão de doenças, devido ao compartilhamento de agulhas – os casos de HIV em presídios, em sua grande maioria, estão ligados à prática sexual desprotegida.

Levando esse ponto em consideração, ele elenca três hipóteses que podem justificar o aumento:

1) Alta na população em geral: dados do Ministério da Saúde mostram que o número de casos de HIV cresceu nos últimos anos e, para o especialista, pode ser que os presídios sejam apenas um reflexo da sociedade.

“Houve um aumento específico de número de casos na população geral. Eventualmente, a prisão só está refletindo um aumento que ocorreu fora, na comunidade que representa esses grupos, de pessoas mais vulneráveis”.
2) Crescimento das testagens: outra possibilidade é de que o número não demonstre um aumento nas infecções, mas, sim, nos diagnósticos. “Talvez, antes não se testava todo mundo e agora começou a testar, a fazer uma triagem em massa dessas doenças”.

3) Aumento na transmissão: a terceira hipótese considera uma alta na exposição e transmissão da doença dentro da prisão, mas Julio acha menos provável. “Lógico que existem homens que fazem sexo com homens dentro da prisão e que, inclusive, trabalham com isso dentro da prisão”.

“Por isso, é importante, sim, ter acesso a preservativos, a terapias de prevenção, para HIV como PrEP. Tudo que existe lá fora em termos de prevenção é importante estar dentro da prisão também. Entende-se que as relações sexuais são menos frequentes dentro da prisão, mas, eventualmente, existem”.

SAP diz que aumentou testagens

A segunda hipótese levantada por Croda aparece na justificativa da SAP. De acordo com a pasta, todos os presídios citados no levantamento foram premiados por atingirem as metas de investigação e identificação de doenças infecciosas em 2023.

Já em outubro do ano passado, o CPP de Hortolândia, o CPP de Campinas e a Penitenciaria de Hortolândia II foram premiadas no 1º Simpósio Integrado de Vigilância Epidemiológica do Estado, promovido pelo Centro de Vigilância Epidemiológica – CVE.

“Essas unidades foram destaque por registrarem minimamente cinco novos casos de tuberculose durante o ano de 2023, com índice de cura igual ou superior a 85%”.

A Secretaria da Administração Penitenciária informa ainda que “Coordenadoria das Unidades Prisionais da Região Central do Estado, que engloba os presídios solicitados, foram realizados 55.884 testes rápidos de HIV entre 2023 e 2024; 53.131 testes rápidos sífilis entre 2023 e 2024; 109.015 testes rápidos de hepatite no mesmo período”.

Disse também que “as equipes de saúde das unidades prisionais realizam um trabalho permanente de monitoramento, identificação e tratamento dos casos de tuberculose no sistema penitenciário. Atualmente, o Estado, por meio da SAP, conta com dois laboratórios para detecção de casos da doença na população prisional”.

População presa é particularmente mais vulnerável

Negros, pobres e de baixa escolaridade. Populações que, normalmente, têm acesso dificultado aos cuidados com a saúde são maioria nos presídios. É por isso que Gustavo Passos, representante do setor de Informações Estratégicas do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids), define o sistema prisional como “exacerbador de desigualdades”.

O especialista diz que esses fatores, quando aliados a questões típicas do funcionamento das cadeias, fazem com que as pessoas custodiadas sejam particularmente mais sujeitas ao HIV e outras infecções. O peso é atribuído a questões como o machismo, o estigma, à desinformação e à ideia de que presos não têm direito à dignidade.

1) Estigma e machismo afetam a prevenção: “tem homens que são heterossexuais, que estão lá dentro, que podem vir a ter relações sexuais com outros homens que estão. Eles não se veem como homossexuais, bissexuais, nem nada. Então sobre essa pessoa, você tem uma grande carga de estigma”, comenta Gustavo.

“Ele não vai revelar para o profissional de saúde do sistema prisional que está mantendo relações sexuais com outros homens. Então, ele não vai ter acesso a insumos de prevenção, ele não vai requerer testagem, ele não vai requerer nenhuma das coisas que a unidade prisional oferece para prevenir, testar, diagnosticar e tratar o HIV”.

2) Falta informação e é difícil manter o tratamento sob sigilo: “dentro do sistema prisional, a maioria traz questões de discriminação e há pouca informação sobre como a infecção por HIV acontece, como se transmite”, comenta o especialista. A desinformação também se torna um problema em meio ao não cumprimento do sigilo sorológico.

“A pessoa não precisa revelar para ninguém que ela vive com HIV. Só que, dentro do sistema prisional, ela precisa estocar o seu próprio medicamento dentro da cela. Então, como é que você vai manter o seu sigilo, se outras pessoas estão vendo você manuseando aquele medicamento?”, indaga Gustavo.

3) Acesso precário à saúde atrapalha cuidado: uma inspeção realizada pela Defensoria Pública em Campinas e Hortolândia flagrou situações de insalubridade e descuido à saúde aos presos. O cenário, que não é exclusividade da região, traz implicações no tratamento dessas doenças e é duramente impactado pelo desleixo quase intencional com essa população, como pontua Gustavo.

“No contexto do sistema prisional, as pessoas não ouvem as pessoas privadas de liberdade. As pessoas privadas de liberdade, elas ainda têm esse outro estigma, que é o estigma de terem cometido um crime ou estarem aguardando julgamento por uma acusação de um crime. Então, não se tem uma cultura de escutar a pessoa privada de liberdade dentro das suas especificidades”.

“Um primeiro passo para entender como a gente pode responder essas questões de estigma, essas questões de sigilo, de pensar um protocolo, pensar um atendimento mais humanizado, é suspender a situação dessas pessoas privadas de liberdade a um patamar em que elas possam ser consideradas sujeitos legítimos de ação sobre si mesmas”.

Além das sexualmente transmissíveis, doenças infecciosas do sistema respiratório também assolam as prisões. Entre elas está a tuberculose que, segundo Croda, é a que mais mata a população encarcerada. “É diretamente ligada às condições de encarceramento, de superlotação e falta de ventilação”, detalha.

Com a queda no número de custodiados, os casos da doença também tiveram retração na região de Campinas. “Se você reduz a superlotação, você gera um impacto direto nos casos de tuberculose”, diz o médico. Os dados enviados pela SAP também incluem outras doenças infecciosas não especificadas, que tiveram alta de 56,8% entre os últimos dois anos.

Para todos os casos, Gustavo Passos cita a importância da defesa dos direitos e da criação de políticas públicas pela saúde. “O direito a tratamento diagnóstico, prevenção, atendimento humanizado e todas essas questões, é uma garantia de direitos humanos que a gente precisa trabalhar para que nenhuma população seja vulnerabilizada”.

Fonte: G1