Marie Claire: Por que mulheres cisgênero heterossexuais também deveriam usar PrEP para evitar o HIV

Por décadas, quando se falava em prevenção do HIV, a resposta era sempre a mesma: camisinha. Isso mudou desde o advento da PrEP, um comprimido que, se usado corretamente, impede a infecção pelo vírus. No entanto, até hoje, as campanhas sobre o remédio seguem focadas nos públicos mais atingidos: homens gays, mulheres trans, trabalhadores do sexo e usuários de drogas.

Enquanto isso, um grupo segue fora da conversa: as mulheres cisgênero heterossexuais. E isso precisa mudar. Elas representam cerca de um terço dos novos casos de HIV no Brasil todos os anos e também podem, e devem, se beneficiar da PrEP.

Na cidade de São Paulo, onde a PrEP é amplamente oferecida desde 2018, o impacto foi evidente: os novos casos de HIV caíram 53% entre 2016 e 2024. Mas essa queda não foi igual para todo mundo. “Os casos despencaram entre homens gays, brancos, escolarizados e mais velhos”, explica o infectologista Rico Vasconcelos, do Núcleo de Medicina Afetiva (NuMA) e do Centro de Pesquisa Clínica do Hospital das Clínicas da USP.

O fenômeno não é exclusivo do Brasil. A Inglaterra, por exemplo, viveu algo parecido. Em 2022, o número de infecções entre héteros (homens e mulheres) foi maior do que entre homens gays no país. “Não porque os heterossexuais começaram a se infectar mais, mas porque a queda aconteceu apenas entre quem tinha acesso à prevenção”, explica o médico.

Por isso, pesquisadores dedicados a saúde pública e prevenção de HIV já perceberam que é preciso corrigir a rota. “Mulheres cisgênero heterossexuais são um grupo que precisa ouvir também sobre prevenção de HIV, porque senão daqui a pouco só vai restar elas se infectando pelo vírus”, aponta.

Afinal, o que é a PrEP?

A sigla vem de Profilaxia Pré-Exposição. Trata-se de um comprimido que combina dois antirretrovirais (tenofovir e entricitabina) e, se tomado continuamente, impede que o HIV se multiplique no organismo. Assim, mesmo que a pessoa entre em contato com o vírus, a infecção não se instala.

“Funciona de forma muito parecida com um anticoncepcional. Você toma diariamente e, se fizer direitinho, está protegida”, compara Vasconcelos. “Mas, assim como a camisinha, só funciona se você usar. Quem pega o remédio e não toma, não está protegida.”

Quem deve usar?

Mulheres cisgênero heterossexuais que têm relações casuais e não conseguem usar camisinha são candidatas claras à PrEP. E esse “não conseguir” pode ter vários motivos: desconforto físico, dificuldade em negociar o uso com parceiros, situações de vulnerabilidade ou simplesmente porque, no momento da relação, a camisinha não é utilizada, seja por desejo ou por uso de uma substância que altere o juízo.

O cenário mais comum, segundo o médico, é a mulher usar camisinha na primeira vez com um parceiro casual. Na medida em que os encontros se repetem, ela confia e tira o preservativo.

“Esse parceiro não passou por nenhum portal purificador que o torna livre de HIV depois do quinto encontro. E, muitas vezes, a decisão de tirar a camisinha não vem acompanhada de conversas sobre exames e exclusividade. Para mulheres nessa situação, a PrEP é indicada.”

— Rico Vasconcelos, infectologista

É fácil acessar o remédio?

Sim. Desde 2022, qualquer pessoa que se sinta em situação de risco pode pegar PrEP pelo SUS, inclusive mulheres cis heterossexuais. O remédio está disponível nos centros de referência de IST/HIV, em serviços de atenção primária e até via teleatendimento, por startups como a VenLibre — co-fundada por Vasconcelos —, que enviam o medicamento e os testes de acompanhamento para casa.

Também é possível acessar a PrEP com médicos particulares ou de convênio, mas retirando o medicamento gratuitamente no SUS.

Tem efeitos colaterais?

De forma geral, a PrEP é bem tolerada. É comum um grau de desconforto gastrointestinal nos primeiros dias, mas isso tende a desaparecer com o uso contínuo. A principal preocupação médica é a função dos rins. Em menos de 1% dos casos, pode ocorrer uma alteração reversível, que some quando o uso é interrompido. Por isso, quem usa pode precisar fazer exames regulares de controle.

“Se a pessoa já tem uma insuficiência renal grave, aí sim a PrEP está contraindicada”, explica Vasconcelos. “Mas quem tem pedra nos rins, infecção urinária de repetição ou outras condições, desde que a função renal esteja preservada, pode usar sem problemas.”

E as mulheres lésbicas?

Na maioria das práticas sexuais entre mulheres, o risco de transmissão do HIV é muito baixo. Por isso, a recomendação costuma ser mais voltada para as mulheres que também fazem sexo com homens. Mas vale um alerta: isso não significa que estão protegidas de outras ISTs, como HPV, sífilis e clamídia.

Camisinha ou PrEP?

A resposta não é uma nem outra. É o que se chama de prevenção combinada, conceito adotado pelo Ministério da Saúde. A ideia é que cada pessoa escolha, dentro de um cardápio de opções, aquilo que funciona para sua vida.

“Por 40 anos, ouvimos que qualquer problema sobre HIV se resolvia com camisinha. E se você não gosta? Camisinha. E se você não quer? Camisinha. E se você não consegue? Camisinha. Isso não funciona mais assim. Precisamos virar essa chave. E dar autonomia pras pessoas escolherem como querem se proteger”, diz Vasconcelos.

Fonte: Marie Claire