GQ: O dia histórico em que cientistas descobriram o vírus da Aids, 42 anos atrás
No dia 4 de fevereiro de 1983, um grito atravessou o silêncio de um laboratório do Institut Pasteur, em Paris. Eram 17h45 quando o microscopista Charlie Dauguet, debruçado sobre um microscópio eletrônico, avistou pela primeira vez as partículas de um retrovírus até então desconhecido. “Eureka, é isso, eu vejo, eu tenho, eu tenho!”, exclamava o cientista enquanto corria pelo laboratório.
Em seguida, tirou foto do que via. Meses depois, em um maio como o de agora, mas 42 anos atrás, a imagem — junto a um estudo completo — era publicada na revista científica Science para entrar para a história: mostrava o vírus que viria a ser identificado como HIV, causador da síndrome da imunodeficiência adquirida (aids). O mundo científico testemunhava o início de uma revolução no entendimento de uma das maiores crises de saúde pública do século 20. Um marco que mudaria para sempre a trajetória da medicina, da saúde pública e da vida de milhões de pessoas.
A descoberta do vírus da Aids
Dois anos antes da descoberta, no dia 5 de junho de 1981, um pequeno artigo em uma publicação científica dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) relatava que cinco homens jovens de Los Angeles haviam desenvolvido uma forma rara de pneumonia fúngica, a Pneumocystis carinii, normalmente associada a sistemas imunológicos severamente comprometidos. Dois deles já haviam morrido. Poucas semanas depois, surgiram relatos semelhantes em Nova York e São Francisco. A ameaça crescia. E o mundo ainda não sabia o nome do inimigo.
Ao longo de 1982, a nova doença já devastava comunidades inteiras, especialmente homens gays. Por isso, os jornais da época costumavam apelidar a doença de “o câncer gay”. E assim começa o pesado estigma em cima da população homossexual.
No Brasil, casos similares também passaram a ocorrer. Entre eles, o estilista Markito, figura emblemática da moda nas décadas de 1970 e 1980, que chegou a vestir grandes personalidades brasileiras e internacionais, como Sônia Braga, Xuxa, Diana Ross e Farrah Fawcett. Com 31 anos de idade, em junho de 1983, ele faleceu nos Estados Unidos. Foi a primeira figura pública brasileira a comprovadamente morrer por causa da nova epidemia.
Em setembro de 1982, o CDC finalmente batizou o fenômeno com um nome oficial: Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, ou Aids. O que era visto como um problema dos homens gays, passou a assustar ainda mais o resto do mundo quando surgiu a notícia de que mães também haviam passado a doença para bebês em estados como Nova York e Califórnia.
Sem saber como a doença se propagava e sem um teste diagnóstico, profissionais da saúde viam o número de casos subir, mas permaneciam às escuras quanto à real extensão do contágio.
Enquanto a sociedade começava a despertar para a dimensão da tragédia, um esforço silencioso e obstinado acontecia em um laboratório francês.
Em dezembro de 1982, a jovem pesquisadora Françoise Barré-Sinoussi, ao lado de Jean-Claude Chermann e sob liderança de Luc Montagnier no Instituto Pasteur, foi encarregada de uma missão: isolar o retrovírus desconhecido que estaria por trás da aids. A amostra de um linfonodo chegou às mãos da equipe em janeiro de 1983. Menos de duas semanas depois, os primeiros sinais da atividade de transcriptase reversa (enzima típica dos retrovírus) foram detectados, dando uma esperança concreta de que o vírus pudesse ser enfim identificado.
Era preciso ver para crer. E coube ao microscopista Charlie Dauguet a missão de visualizar as partículas virais com um microscópio eletrônico. Foram dias de paciência e concentração. Até que, em 4 de fevereiro de 1983, às 17h45, ele proferiu o grito de sucesso ao enxergar na sua frente o vírus isolado.
Assim, o que começou como um enigma trágico finalmente ganhava contornos científicos. O vírus foi inicialmente batizado de LAV (vírus associado à linfadenopatia), e mais tarde receberia o nome de HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana). A descoberta permitiu o desenvolvimento dos primeiros testes de detecção e abriu caminho para o tratamento e prevenção.
Do medo aos avanços contra a Aids
Depois da descoberta, começaram a surgir campanhas de conscientização em diversos países. O símbolo da fita vermelha como conhecemos hoje surgiu em 1991 e rapidamente se tornou um ícone global da luta contra a doença.
O desenvolvimento de um teste diagnóstico eficaz, lançado em 1985, marcou o início de uma virada no combate à aids. Esses avanços só foram possíveis graças ao sequenciamento da enzima transcriptase reversa, essencial para a replicação do vírus. Ao longo dos anos, novos medicamentos surgiram, e os coquetéis antirretrovirais se tornaram cada vez mais eficazes e acessíveis.
No Brasil, a distribuição gratuita desses medicamentos teve início em 1991 e ajudou a reduzir a mortalidade pela doença em 50% até o final daquela década.
Hoje, estima-se que um milhão de pessoas vivam com HIV no país. A maioria do sexo masculino: 650 mil. São os homens também os que mais conseguem diagnóstico (92%, comparado a 86% das mulheres) e os que mais se tratam (82% deles fazem uso de antirretroviral, e 79% das mulheres).
Disponível pelo SUS desde 2018, a PrEP, sigla em inglês para Profilaxia Pré-Exposição, é uma estratégia de prevenção ao HIV que consiste no uso programado de um medicamento específico antes de uma possível exposição ao vírus. Com isso, impede que o HIV se instale no organismo em caso de contato.