Estadão: O fim da aids ainda está ao nosso alcance – por Andrea Boccardi Vidarte
Um novo relatório do Unaids, Aids, crise o poder de transformação, mostra que, até 2024, a resposta global à aids havia alcançado um momento promissor. As mortes relacionadas à aids por ano caíram para 630 mil— uma redução de 54% desde 2010. Quase 32 milhões de pessoas estavam recebendo terapia antirretroviral que salva vidas, mantendo ao alcance a meta sonho de acabar com a aids como ameaça à saúde pública até 2030.
As novas infecções por HIV caíram 40% e pelo menos sete países alcançaram a meta ambiciosa de 95-95-95 para testagem e tratamento, estabelecida para 2025. O Brasil está quase lá: em 2024, 96% das pessoas que viviam com HIV conheciam seu diagnóstico; 82% das pessoas que sabiam que viviam com HIV estavam em tratamento antirretroviral; e 95% das pessoas em tratamento estevam com a carga viral suprimida.
Porém, o mundo não está no mesmo caminho. Cortes no financiamento global para o HIV provocaram o que pode se tornar um desmoronamento catastrófico de décadas de progresso. Se esses cortes não forem revertidos, as projeções sugerem que mais de 4 milhões de mortes adicionais relacionadas à aids e mais de 6 milhões de novas infecções por HIV podem ocorrer entre 2025 e 2030 no mundo. Não estamos numa encruzilhada, estamos à beira de um precipício.
Felizmente, o Brasil garante o tratamento para o HIV de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) a todas as pessoas que vivem com HIV. O Brasil também avançou na eliminação da transmissão vertical do HIV, um dos compromissos assumidos pelo programa interministerial Brasil Saudável, além da eliminação da aids enquanto problema de saúde pública. Isso é reflexo do reconhecimento de que o HIV é resultado de uma série de determinantes sociais de saúde que requerem uma resposta multisetorial com foco no enfrentamento à fome e à pobreza, ampliação dos direitos humanos e proteção social para populações e territórios prioritários.
Outras evidências destacadas no relatório do Unaids mostram que famílias que receberam o Bolsa Família tiveram uma incidência do HIV 41% menor e a mortalidade relacionada à aids foi 39% menor nas famílias que receberam o benefício. Os efeitos foram mais fortes entre as pessoas das famílias mais pobres. O acesso ao programa Bolsa Família é condicionado à frequência escolar, à imunização das crianças e ao acompanhamento pré-natal das mulheres grávidas – 33% das gestantes vivendo com HIV descobriram sua sorologia no pré-natal, de acordo com o Boletim Epidemiológico HIV/aids 2024 do Ministério da Saúde.
A história da resposta ao HIV não é apenas uma história de saúde pública — é uma história do que acontece quando o investimento de longo prazo, o compromisso político, a ciência e a liderança comunitária se alinham. Mas eles não podem fazer isso sozinhos. A pandemia da aids também está longe de terminar. Embora tenha havido muitos avanços, 1,3 milhão de pessoas contraíram o HIV em 2024 — mais do que o triplo do esperado globalmente para 2025. Não se trata de uma questão científica. É uma questão de política, financiamento e vontade. Um dos exemplos mais recentes são os medicamentos injetáveis de longa duração, que podem ser revolucionários para a prevenção do HIV. Com eficácia próxima de 100% e dosagem subcutânea semestral, esse medicamento pode ser transformador, já que é seguro inclusive durante a gravidez, e pode ser uma possibilidade para as pessoas que não conseguem aderir à PrEP oral ou que têm multirresistência ao tratamento antirretroviral.
Porém, a promessa da inovação está sendo sufocada pelo lucro. O fabricante desse medicamento (a Gilead) fixou o preço em mais de US$ 28 mil por ano nos Estados Unidos — apesar de os custos de produção estimados em apenas US$ 25 se a demanda aumentasse entre 5 milhões a 10 milhões de doses por ano. Num mundo justo, isso seria saudado como um bem público global. Em nosso mundo, é um item de luxo.
À medida que o modelo tradicional de financiamento da saúde global se desgasta, devemos estabelecer um modelo enraizado no investimento público global — uma estrutura em que os países contribuam de acordo com sua capacidade, compartilhem a governança e busquem interesses comuns.
Também precisamos enfrentar e eliminar as barreiras estruturais: promover acesso a serviços de saúde sem discriminação, disponibilizar diferentes ferramentas biomédicas para que as pessoas possam tomar decisões sobre seus corpos e garantir que as leis de propriedade intelectual não bloqueiem o acesso a medicamentos que salvam vidas.
Estamos mais perto do que nunca de acabar com a aids. O que precisamos agora é de coragem — coragem dos governos para financiar o que funciona; das comunidades para demandar aos laboratórios preços que os governos possam pagar; licenças voluntárias para produzir medicamentos genéricos de baixo custo; lideranças para defender os direitos humanos e de todas as pessoas para nos solidarizarmos com as comunidades mais afetadas e garantir que estão no centro da resposta.
* Andrea Boccardi Vidarte é diretora e representante do Unaids no Brasil, é doutora em Ginecologia e Obstetrícia, com graduação em Medicina pela Universidade da República Oriental do Uruguai.