“Escreve aí: a maldita é a aids” — quando Cazuza revelou à Zeca Camargo e à Folha de S. Paulo que vivia com HIV

Foi em uma tarde de 1989, durante uma conversa em Boston, nos Estados Unidos, que um dos momentos mais impactantes da história da música brasileira e da luta contra o HIV/aids ganhou forma. Cazuza, já debilitado pelos efeitos da doença, pegou uma taça de vinho, olhou para o jornalista Zeca Camargo, então correspondente da Folha de S.Paulo, e disse com todas as letras: “Escreve aí: a maldita é a aids.”

A frase marcaria a primeira vez que o cantor e compositor falava abertamente sobre o diagnóstico de HIV em uma entrevista. Em uma época em que o tema ainda era cercado por medo, silêncio e estigma, o gesto foi mais do que uma revelação — foi um ato de coragem pública e de enfrentamento ao preconceito.

Dos primeiros sintomas à decisão de falar

Os primeiros sinais surgiram ainda em 1985, com episódios de febre e convulsões. O diagnóstico oficial, segundo relatos da família, veio em 1987, confirmando que Cazuza vivia com o HIV e já apresentava sintomas da aids. Durante dois anos, o artista manteve sua condição em sigilo, lidando com tratamentos, internações e os efeitos físicos da doença enquanto seguia ativo na música.

Mas foi uma canção de sua própria autoria que, segundo ele, o motivou a romper o silêncio. No álbum Ideologia, lançado em 1988, Cazuza canta, no refrão de “Brasil”:
“Brasil, mostra a tua cara.”

A provocação se voltou contra ele mesmo. O artista compreendeu que, para lutar contra o estigma, era preciso dar o rosto à doença.

A entrevista com Zeca Camargo

Em fevereiro de 1989, durante o carnaval, Cazuza viajou para Boston para realizar exames. Lá, recebeu a visita de Zeca Camargo, que acompanhava sua trajetória artística e foi escalado para entrevistá-lo. Segundo relato posterior do jornalista, a conversa começou tensa. Ao ser questionado sobre a internação, Cazuza demonstrou irritação e respondeu que estava com uma doença e sem paciência para falar sobre o assunto. Mas, em um gesto repentino e contundente, levantou a taça de vinho e declarou:

“Escreve aí, Zeca. A maldita é a aids.”

Zeca, ainda impactado, publicou a entrevista na Folha de S.Paulo, e a notícia repercutiu fortemente em todo o país. Cazuza se tornava, naquele momento, uma das primeiras figuras públicas brasileiras a falar abertamente sobre viver com HIV.

Um divisor de águas

A revelação de Cazuza foi um marco no combate ao preconceito. Em um Brasil mergulhado em desinformação e moralismo, ele se expôs com dignidade e ousadia, trazendo à tona discussões urgentes sobre saúde, sexualidade, direitos humanos e empatia.

Sua postura inspirou não apenas fãs, mas também ativistas, profissionais de saúde e outras pessoas vivendo com HIV, que encontraram em sua atitude uma forma de resistência. Cazuza enfrentou a doença em público, transformando sua dor em arte e seu corpo em bandeira política.

O legado permanece

Cazuza faleceu em 7 de julho de 1990, aos 32 anos. A memória do artista, no entanto, vai além da música. Sua decisão de contar ao mundo que vivia com HIV permanece como um dos gestos mais simbólicos de enfrentamento ao estigma e à desumanização causados pela epidemia de aids.

Mais do que um artista genial, Cazuza foi — e continua sendo — um símbolo de coragem, vulnerabilidade e liberdade.

Fonte: Agência Aids