Desmonte das políticas de educação sexual leva ao crescimento de epidemias de ISTs entre a juventude, destaca Jornal da USP
Dados do Ministério da Saúde mostram que as taxas de HIV e sífilis vêm crescendo de forma alarmante entre jovens de 15 a 29 anos. O número de infecções por HIV mais que dobrou entre os de 20 a 24 anos em pouco mais de uma década. A sífilis também disparou. Em paralelo, programas de educação sexual seguem esvaziados. As consequências não são apenas epidemiológicas, mas sociais e políticas: a sexualidade segue sendo tabu, mesmo com a volta de uma epidemia silenciosa entre a juventude. Quem explica é o infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da USP.
Ele aponta que, há 40 anos, a primeira onda de HIV assustava a população, pois essa era uma doença amplamente conhecida por ser fatal. Nesse contexto houve uma ampla campanha, que levou a uma maior adesão ao uso de preservativos e à procura de diagnósticos. “Houve uma diminuição da transmissão não só do HIV, mas, como consequência, das outras ISTs”, explica. Contudo, assim surgiu também uma nova preocupação: “Com o tratamento bem-sucedido que se consegue hoje com o HIV, houve uma desmistificação do risco de você ter uma IST. Então ela volta a aumentar de uma maneira mais expressiva.”
Para o professor, apesar de haver uma maior liberdade em falar sobre sexualidade, isso não significa que haja um debate responsável e que leve à prevenção: “Não se tem chegado a conscientizar com relação à necessidade da prevenção, que é fundamental”. Ele aponta, com preocupação, o aumento significativo de gravidez em meninas com menos de 12 anos. “Sexualidade é um agravante quando não se faz a prevenção, em todo sentido. E a prevenção da gravidez é a mesma prevenção das ISTs. Então é necessário interagir.” Nesse sentido, ele reforça a necessidade do retorno de fortes campanhas de combate às ISTs, mas aponta a necessidade de adaptá-las a formatos que de fato atinjam a juventude atual, como o uso das redes sociais e a utilização de uma linguagem que se conecte com essa geração.
Para Marcos Boulos, um outro ponto preocupante é a postura negacionista e punitivista de lideranças nos últimos tempos: “Nós tivemos uma dificuldade enorme em lidar com problemas de saúde alguns anos atrás. Com posturas até dos líderes que não priorizam esse tipo de situação. Eles falam ‘não’ e pronto. ‘A partir de agora, as pessoas não podem ter sexo, não podem fazer nada’. Nós sabemos que a realidade não é essa. As pessoas que tratam dessa maneira, e que punem só e não orientam, é um problema sério, tem acontecido em boa parte do mundo, esse processo aqui no Brasil aconteceu”.
Ofensiva conservadora
A professora Cristiane Cabral, da Faculdade de Saúde Pública, por sua vez, aprofunda o debate sobre a ofensiva conservadora que desmonta a educação sexual no País. “De 2014, 2016 para cá, houve esse desmonte incisivo e proposital das políticas públicas que, outrora, foram muito bem-sucedidas. Basta lembrar que o Brasil era exemplo para o mundo de política pública de controle da epidemia do HIV.” Para ela, os efeitos dessa desestruturação ficam evidentes a partir dos atuais dados do Ministério da Saúde.
Cristiane aponta, também, a mudança de abordagem de prevenção que tem sido priorizada. Ela explica que, durante a década de 90, a aposta era a conscientização, que buscava uma prevenção comportamental: “A gente tinha uma aposta muito grande, por exemplo, no braço da prevenção comportamental. Poder discutir sobre sexualidade, poder discutir sobre gênero, poder discutir sobre HIV e aids”. Hoje, contudo, a tendência é apostar na indústria farmacêutica e na propagação de medicamentos de prevenção: “A gente fala muito menos dos comportamentos e fala muito mais, por exemplo, de PrEP e PEP, que é uma forma importante de prevenção e controle da epidemia, mas que coloca a indústria farmacêutica e os medicamentos como sendo a principal ação das intervenções”.
Nesse sentido, ela explica a urgência de levar à juventude um debate completo e responsável para assegurar que a sexualidade seja desenvolvida com segurança e de maneira saudável. “Sem ter educação para a sexualidade de verdade no sistema de ensino, a gente realmente deixa nossos jovens completamente despreparados, à mercê de conteúdos que hoje em dia estão circulando livremente na internet”, reforça. Para a professora, é necessário garantir que esses debates aconteçam nas escolas, para que não sejam restritos às redes sociais, um ambiente que ela caracteriza como desregrado.
A professora comenta, também, o crescimento do conservadorismo entre a nova geração, perfil que se expressa principalmente entre jovens do sexo masculino: “Tem uma cruzada moral e religiosa sendo feita há décadas, e ela se intensificou muito nos últimos 15 anos, e isso, claro, vai ter seus efeitos na atual geração, que vai realmente estar cada vez mais conservadora”. Para ela, essa tendência vai de encontro com os avanços históricos conquistados pela luta feminista e LGBT sobre saúde sexual e autonomia corporal, e faz parte dos retrocessos observados. “Tem acontecido diversas investidas contrárias, para ir minando, quebrando conquistas importantes do movimento feminista, do movimento de mulheres do século 20 na atual conjuntura.”
Cristiane finaliza apontando a perigosa e confusa linha tênue entre o Estado, definidor das políticas públicas nacionais, e a religiosidade. “Tem uma mistura muito grande do Estado com a religião, e isso realmente está fazendo a gente andar léguas para trás. Acho que uma medida era realmente conseguirmos fazer com que o Estado seja laico. Que não tenha tanta interferência da dimensão da religião na produção de políticas públicas de todos os âmbitos. Isso é um grande desafio que não