Eliminação da transmissão vertical do HIV é conquista histórica do SUS, afirmam médicas, mas exige continuidade e enfrentamento das desigualdades
A certificação da eliminação da transmissão vertical do HIV no Brasil, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), marca um dos momentos mais emblemáticos da história da saúde pública nacional e latino-americana. Resultado de mais de quatro décadas de construção coletiva no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o reconhecimento internacional consolida o papel de profissionais de saúde, pessoas vivendo com HIV/aids, movimentos sociais, pesquisadores e gestores públicos na organização de uma rede de atenção baseada em evidências científicas, cuidado integral e participação social. Para médicas que atuam diretamente na assistência, na gestão e na formulação de políticas públicas em HIV/aids, a certificação é motivo de celebração, mas também de responsabilidade permanente: manter e ampliar as estratégias de prevenção, garantir o diagnóstico precoce da infecção pelo HIV, assegurar serviços acolhedores que promovam a permanência das pessoas vivendo com HIV em acompanhamento, enfrentar o estigma e as desigualdades regionais e reafirmar o compromisso de que nenhuma criança nasça com HIV no país.
Dra. Maria Clara Gianna, médica sanitarista e consultora do Dathi, ressalta que a certificação simboliza um processo histórico e, ao mesmo tempo, um compromisso permanente:

“A certificação da eliminação da transmissão vertical do HIV representa uma importante conquista para o SUS no nosso país. Um caminho percorrido ao longo de 40 anos que envolveu e continua envolvendo profissionais de saúde, pessoas vivendo com HIV/aids, representantes da sociedade civil, pesquisadores e gestores comprometidos em organizar uma rede de atenção e incorporar em diferentes períodos diferentes tecnologias.
A certificação é um compromisso, devemos continuar trabalhando para que nenhuma criança nasça com HIV. Também significa que estamos no caminho certo para eliminar a Aids e a transmissão do HIV até 2030 , para tanto precisamos urgentemente avançar nas estratégias de prevenção incluindo as pessoas mais vulneráveis, no diagnóstico precoce da infecção pelo HIV, em serviços de saúde acolhedores que garantam a permanência das PVHA em acompanhamento, na diminuição do número de óbitos relacionados a Aids, no enfrentamento ao estigma e discriminação.A eliminação da transmissão vertical demonstra que podemos avançar muito mais!”
Para a Dra. Rosa Alencar, infectologista e coordenadora-adjunta do Programa Estadual de IST/Aids de São Paulo, o reconhecimento da OMS tem peso histórico e político:

“O reconhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que o Brasil eliminou a transmissão vertical do HIV como problema de saúde pública representa uma conquista histórica para o país e para a América Latina. Esse resultado reflete a ampliação do acesso à testagem, ao pré-natal e ao tratamento antirretroviral gratuito, bem como a consolidação de políticas públicas construídas em parceria com os movimentos de aids, baseadas nas melhores evidências científicas e sustentadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Como o maior país do mundo a alcançar esse feito, o Brasil se consolida como referência internacional no enfrentamento do HIV e na defesa do direito à saúde. Para gestores, gestoras e profissionais de saúde desse campo, trata-se de uma conquista coletiva que reafirma o compromisso com a vida e nos aproxima do objetivo de eliminar a aids e a transmissão do HIV como problema de saúde pública até 2030.”
A pediatra Dra. Daniela Vinhas Bertolini, do Centro de Referência e Treinamento em IST/Aids de São Paulo, enfatiza o trabalho em rede e o impacto direto na vida das famílias:

“A Certificação Nacional da Eliminação da Transmissão Vertical do HIV é um marco histórico para nosso país e para América Latina. É fruto de um trabalho serissimo de toda rede SUS de anos e anos, sendo possível graças a interligação dos serviços de atenção básica, rede especializada, maternidades e serviços de pediatria.
Assistir a toda evolução da transmissão vertical, com tantos avanços do nosso protocolo de prevenção da transmissão vertical com todas as medidas instituídas é emocionante! Poder dar a segurança as famílias de que a chance de transmissão vertical é praticamente zero se todo o protocolo for cumprido é sensacional.
Mas apesar de termos muito a comemorar, sabemos que temos muito a lutar ainda pelas nossas crianças. Temos um pais de dimensões continentais e muita desigualdade de assistência e possibilidades na população. A luta continua para que 100% das crianças e famílias tenham as mesmas oportunidades e para que tenhamos um país cada vez mais igualitário na eliminação da transmissão vertical.”
Já a infectologista Dra. Zarifa Khoury, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, chama atenção para o impacto clínico e epidemiológico da certificação:

“A eliminação da transmissão vertical representa o controle da principal forma de infecção pelo HIV entre crianças. A infecção na infância tem um impacto diferente do adulto, já que ocorre em uma fase de desenvolvimento dos órgãos. Esse controle supera um obstáculo muito importante no combate à aids na América Latina.”
Dra. Glória Brunetti, médica infectologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas desde 1984: “O HIV não aceita cochilo. É preciso estar sempre atento, falando de prevenção, de cuidado e autocuidado”

“Este é um tema muito caro e muito especial na minha vida: o HIV/aids e as consequências que ele trouxe para as pessoas. Falar sobre isso me faz recordar uma vida inteira, tudo o que a gente passou. Eu começo dizendo: viva a ciência e viva o SUS. É a união da ciência com o SUS que nos trouxe a maravilhosa notícia de que conseguimos controlar a transmissão vertical. Hoje, ela está eliminada como problema de saúde pública no Brasil. Isso é uma alegria imensa, que precisa ser comemorada como humanidade e como país. É muito orgulho do Brasil.
Em 1986, eu era residente no pronto-socorro do Hospital Emílio Ribas. Era meu estágio, eu passava um mês lá e ia todos os dias. Havia uma senhora internada na sala 7, perto da porta de entrada, agonizando de aids, numa fase muito precoce da epidemia. Naquela época, existia apenas uma medicação aprovada no mundo, o AZT. Mal tínhamos terminado de desenvolver os testes para identificar o vírus, tudo era muito recente. Ela apresentava um quadro hematológico grave e estava morrendo. Já em estado bastante rebaixado, nós optamos por sedá-la para que não sofresse.
À tarde, apareceu um senhor para visitá-la, bastante embriagado, falando alto, dizendo que tinha ido vê-la, mas que precisava ir embora porque ela havia deixado uma criança sozinha em casa. Imaginem a situação: aquela mulher, sofrendo, em processo de morte. Perguntei: ‘Que criança?’. Ele respondeu: ‘Ela teve um filho, não contou?’. Ela não havia dito nada, já tinha chegado muito grave. Perguntei com quem a criança estava. Ele disse: ‘Com a vizinha’. Eu pedi: ‘Traga essa criança, nós vamos cuidar dela’.
Foi assim que a primeira criança suspeita de HIV entrou no Hospital Emílio Ribas. No dia seguinte, ele trouxe a criança. Eu a levei para a pediatria, no segundo andar, e a entreguei aos médicos. Ela foi acompanhada, fez seguimento, e posteriormente negativou para o HIV. Naquele momento, ninguém imaginava as dimensões que tudo isso tomaria: o número de pessoas afetadas, de mulheres afetadas, de crianças afetadas. Foi — e ainda é — muita dor.
E quando a dor se soma ao preconceito, ela se torna mais forte, mais destruidora. Sempre lutamos muito contra isso. Nunca tiramos a esperança de ninguém — a esperança não cabe a nós, ela mora dentro de cada pessoa —, mas lidávamos com a realidade, com aquilo que poderia ou não acontecer, mesmo sabendo que havia uma chance enorme de acontecer.
Com a chegada das medicações, a década de 1990 abriu a esperança de que fosse possível controlar a doença. Sempre sonhamos com a cura, mas o controle já é, por si só, algo fundamental. A partir daí, nossa segunda grande luta, além da sobrevivência, passou a ser a adesão ao tratamento.
Ainda falando de preconceito e ignorância, há um caso muito marcante: o da menina Sheila Cortopassi de Oliveira. Em 1992, ela tinha quatro ou cinco anos e já estava no Emílio Ribas havia pelo menos um ano e meio. Os pais haviam falecido, e ela estava judicialmente sob a tutela do hospital, em tratamento, vivendo com HIV. Essa menina foi adotada por um casal de enfermeiros daqui.
O casal a matriculou numa escola. Enquanto ninguém sabia que ela vivia com HIV, tudo correu bem. No ano seguinte, quando essa informação veio à tona, a menina foi expulsa da escola. Instalou-se uma comoção entre instituições de ensino para que nenhuma criança com HIV fosse aceita. Alegava-se que era um risco para a escola, para as outras crianças, para a humanidade. Ou seja, juntaram-se ignorância, falta de ciência e pequenez humana. E essas pessoas sofreram muito preconceito.
A Sheila, no entanto, encontrou uma acolhida linda no Colégio São Luís, em São Paulo. O reitor, padre Petres, afirmou, à época, que São Luís Gonzaga acolhia os pobres, os doentes, os leprosos, e que a instituição não podia se furtar a acolher o que estava acontecendo, justamente porque o que faltava era informação. Foi desenvolvido um grande trabalho de formação dentro da escola, e tudo deu certo.
Esse caso também foi decisivo para políticas públicas. Naquele período, o secretário municipal de Educação era Paulo Freire, que estava adoentado. Quem assumia era o secretário executivo, o professor Mário Sérgio Cortella. Ele e sua equipe acolheram imediatamente a necessidade de pensar políticas para receber crianças vivendo com HIV nas escolas públicas. Com o caso da Sheila, essa política foi rapidamente elaborada. A então prefeita Luiza Erundina sancionou uma lei que proibia qualquer barreira educacional para crianças HIV positivas em escolas municipais — e isso depois se expandiu para a rede estadual. Foi uma grande luta e uma vitória importante contra o preconceito, pela inclusão.
Essas crianças cresceram, amadureceram. Quando receberam cuidado, medicação e acolhimento — seja de uma família, de uma instituição ou de uma casa de apoio —, tornaram-se adolescentes. E esse foi outro capítulo complexo. A adolescência, por si só, já é desafiadora. Quando se soma a necessidade de tratamento contínuo, regras, organização, e ainda a perda do pai, da mãe ou de ambos, muitos desses jovens enfrentaram enormes dificuldades. Muitos, infelizmente, faleceram.
Grande parte das ações sociais que construímos ao longo da carreira nasceu pensando neles. Surgiram iniciativas como a Fundação Poder Jovem e o voluntariado do Emílio Ribas, para acolher jovens e outros pacientes, reforçando a importância da adesão ao tratamento e da luta coletiva contra o preconceito.
Hoje, quando vemos o controle praticamente absoluto da transmissão vertical, entendemos a dimensão dessa conquista. Cortamos uma raiz fundamental do problema. Mas não podemos esmorecer. O HIV não aceita cochilo. É preciso estar sempre atento, falando de prevenção, de prevenção combinada, de cuidado e autocuidado, e também do cuidado com o outro.
Sabemos que pessoas com carga viral indetectável não transmitem o vírus. Isso exige de nós, como sociedade, uma postura de respeito, solidariedade, cidadania e cuidado. Uma das coisas mais importantes da vida é cuidar — de si e do outro.
O HIV/aids, apesar de todas as dores que trouxe e ainda traz, abriu espaço para conversarmos sobre sexo, prevenção, cuidado e organização da vida. Hoje, inclusive, eu havia separado parte da manhã para gravar este depoimento. Sou também paliativista aqui no hospital e trabalho com pacientes com dor. Atendi uma mãe, já minha paciente, e durante o atendimento começamos a conversar sobre o filho que ela perdeu. Ele tinha 24 anos, infecção por transmissão vertical, e faleceu há sete anos. Ela me contou toda a história, toda a dor.
Em certo momento, eu disse: ‘Você sabia que hoje a transmissão vertical não acontece mais?’. Ela respondeu: ‘Ah, doutora, eu não tive essa sorte’. Ela teve três filhos: dois não se infectaram, um sim — e foi esse que ela perdeu. Ela chorou ali, na sala. E eu pensei: essa dor não vai mais existir para essas mães. Cada vez menos pessoas serão afetadas, e essa dor de transmitir o vírus, o sofrimento e, muitas vezes, a morte aos filhos, não fará mais parte da história de tantas mulheres. Terminamos nossa conversa de forma otimista. E isso é, sem dúvida, uma grande vitória da humanidade, uma grande vitória do SUS e da ciência. Viva o SUS. Viva a ciência.”
Dra. Rosana Del Bianco, infectologista do Centro de Referência e Treinamento em IST/Aids de São Paulo: “Espero que a próxima notícia e próximo reconhecimento internacional seja a eliminação do HIV no país”

“Nos enche de orgulho o reconhecimento internacional pela eliminação da transmissão vertical, principalmente por ser uma política pública com vários agentes envolvidos por muitos e muitos anos. Realmente a eliminação se deu com um conjunto de fatores associados como treinamentos e profissionais persistentes, as divulgações para todas as áreas, a aplicação tecnológica como a ação dos testes rápidos durante anos, não só nos órgãos públicos como nos órgãos, todos os órgãos assistenciais e organizações sociais. Porém, não devemos nunca baixar a guarda na transmissão vertical, mesmo com um ganho deste reconhecimento mundial. Espero que a próxima notícia e próximo reconhecimento internacional seja a eliminação do HIV no país.”
Fonte: Agência Aids


