Desinformação digital alimenta medo da testagem e da PrEP, afirmam Dra. Mafê Medeiros e os infectos Hilton Alves e Rico Vasconcelos

Mitos sobre efeitos colaterais, estigmas históricos e conteúdo alarmista nas redes sociais moldam o medo de se testar e iniciar PrEP, explicam especialistas que atuam diretamente no cuidado. ( Imagem:Harvard Public Health)

A internet mudou quase tudo na forma como a gente se informa, conversa e aprende sobre saúde. Para muita gente, ela virou o primeiro — e às vezes o único — lugar de busca quando surgem dúvidas sobre HIV, prevenção ou testagem. Esse acesso ampliado trouxe ganhos importantes, mas também abriu espaço para um outro movimento, mais silencioso e persistente: o da desinformação que se espalha rápido, se repete e vai moldando medos.

Em entrevista à Agência de Notícias da Aids, Maria Felipe Medeiros (Mafê), do Instituto Emílio Ribas e pesquisadora do CRT, Hilton Alves Filho, médico infectologista, e Rico Vasconcelos, infectologista e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, falam sobre como esse ambiente digital interfere diretamente nas decisões das pessoas — desde o medo de se testar até a recusa em iniciar a PrEP — e sobre o desafio de comunicar saúde sem reforçar estigmas.

Para Mafê Medeiros, o que circula hoje nas redes não é exatamente novo. São discursos antigos, conhecidos, que encontram novas formas de reaparecer.

“A gente vê que fortaleceu uma história de HIV muito estigmatizante, que coloca a comunidade LGBTQIA+ num lugar de subpopulação, uma população que carrega o vírus, uma população que é responsável pela transmissão.”

Essas imagens, segundo ela, não ficaram presas ao passado. Elas atravessaram o tempo, foram transmitidas e continuam influenciando a forma como muitas pessoas enxergam o HIV hoje.

“As imagens veiculadas no início da pandemia… isso está no imaginário de quase todas as pessoas brasileiras. Essa ainda é a imagem que as pessoas acham que é do HIV.”

Rico Vasconcelos chama atenção para o peso que a internet passou a ter nesse processo. Não só como meio de informação, mas como espaço onde se aprende — certo ou errado.

“A internet é, pra muita gente, a mais importante, se não a única forma de adquirir conhecimento, de saber das coisas, de se inteirar sobre os assuntos. Ela tem muita coisa boa, mas também tem muita coisa ruim. A partir do momento que qualquer pessoa pode produzir conteúdo, a qualidade da informação nem sempre é boa, e muita gente acaba se informando sobre HIV por fontes que não produzem conteúdo de qualidade, criando um aprendizado equivocado e enviesado.”

Hilton Alves observa que, nas redes sociais, essas narrativas ganham velocidade e alcance, muitas vezes sem tempo para reflexão.

“A internet ampliou o acesso à informação, mas também ampliou o alcance da desinformação. O que antes era restrito a conversas privadas ou a discursos moralizantes reaparece hoje em posts, vídeos virais e conteúdos que reforçam estigmas antigos, inclusive a ideia de culpa moral associada ao HIV. Isso tem um impacto direto no medo de testar e no distanciamento das estratégias de prevenção.”

Nesse cenário, a PrEP acabou se tornando um dos principais alvos do medo. Não por aquilo que ela é, mas pelo que se diz sobre ela.

Mafê conta que, no cotidiano do atendimento, os receios aparecem quase sempre carregados de exagero.

“O mito mais comum não é um mito, na verdade, mas uma importância dada de forma totalmente equivocada aos efeitos colaterais no rim e no osso. Esses efeitos são raríssimos e sempre acompanhados por um profissional de saúde. Tomar PrEP não é só tomar comprimido, é fazer acompanhamento.”

Ela percebe o mesmo movimento em relação à PrEP injetável, muitas vezes cercada por receios que não se sustentam na prática clínica.

“As reações acontecem, muito mais em homens do que em mulheres, e a principal é dor no local da aplicação. Mas é algo totalmente controlável com analgésico simples e que não deveria impedir ninguém de tentar a PrEP.”

Rico reconhece esse medo nas histórias que escuta no consultório, quase sempre atravessadas por informações distorcidas.

“Muita gente acha que a PrEP faz muito mal, que sobrecarrega o corpo e vai causar prejuízos com frequência. Isso não é verdade. São raras as vezes em que a PrEP faz mal. Ao contrário do que se fala, é uma estratégia segura.”

Para Hilton, esse tipo de boato se espalha porque conversa diretamente com a lógica das redes.

“Boatos sobre efeitos colaterais ganham força porque têm apelo sensacionalista. O algoritmo entrega esse conteúdo para mais pessoas, enquanto informações técnicas ou educativas não viralizam no mesmo ritmo. Isso influencia diretamente a percepção de segurança da PrEP e pode afastar usuários em potencial.”

O medo da testagem aparece como consequência desse ambiente, mas também como resultado de uma história longa de estigmas e silêncios.

Mafê lembra que, para muitas pessoas LGBTQIA+, o medo começa cedo.

“Uma das primeiras coisas que a gente escuta na vida é: ‘Você não vai pegar aids?’. Isso cria uma associação emocional entre identidade, vergonha e medo de diagnóstico. Muitas pessoas evitam se testar porque acreditam que, se tiverem HIV, vão morrer. Vira um mecanismo de defesa.”

Ela reforça que o receio não se limita à doença.

“É um misto dos dois, mas existe, sim, a questão da sorofobia. As pessoas são hostilizadas. Tem pessoas que morrem. Isso pesa muito na decisão de testar.”

Rico concorda e observa como o julgamento social segue sendo central.

“As pessoas não têm mais medo de morrer de HIV. Elas têm medo que descubram que elas têm HIV. Ficam pensando: ‘como pegou? o que fez?’. É do julgamento, da discriminação e do estigma que as pessoas têm medo.”

Hilton resume esse sentimento de forma direta.

“O maior medo não é o vírus, é o estigma. A testagem não deveria carregar esse peso emocional, mas ainda carrega porque as narrativas sociais não acompanharam os avanços científicos.”

Quando falam de comunicação pública, os três apontam que campanhas baseadas no medo tendem a aprofundar distâncias.

“As campanhas do governo Bolsonaro mostravam pessoas com medo, com nojo… colocavam imagens feias para tentar assustar. Isso não educa. Só reforça pânico e distância. As pessoas precisam saber a verdade com acolhimento e contexto, não com terrorismo visual”, critica Mafê.

O caminho, segundo eles, passa por facilitar o acesso, fortalecer vínculos e confiar na informação.

“A gente precisa divulgar mais sobre testagem, ampliar metodologias como armários e máquinas automáticas, facilitar o acesso. A maioria das ISTs tem cura, tem tratamento gratuito e eficaz no SUS. Mostrar isso traz segurança”, afirma Mafê.

Rico destaca a importância de referências confiáveis em meio ao ruído digital.

“Acho que precisa haver um canal de confiança, uma instituição ou alguém que tenha notoriedade como conhecedor do assunto. O que o Drauzio Varella fala, por exemplo, é entendido como de qualidade. Isso ajuda a combater boatos, equívocos e desinformação.”

Hilton lembra que comunicar bem também exige entender como as pessoas consomem conteúdo hoje.

“Mensagens curtas, linguagem acessível, vídeos educativos, uso de WhatsApp, telePrEP, campanhas em redes sociais… tudo isso funciona. Mas precisa ser contínuo e feito com responsabilidade, não só em datas específicas.”

O papel de influenciadores surge como um ponto sensível. Mafê traz um olhar que considera a história da própria comunidade.

“Eu não avalio como especialistas improvisados. São pessoas trocando experiências. A saúde sexual foi negada pelas instituições por muito tempo, então a comunidade ocupou esse espaço. O essencial é que dados sobre efetividade e prevenção sejam baseados em evidência científica.”

Rico, por outro lado, faz um alerta sobre os riscos do alcance sem responsabilidade.

“Não dá pra alguém bancar de especialista em saúde sexual sem conhecer toda a ciência produzida. Isso é muito perigoso. Dependendo do alcance, pode ser uma catástrofe para a comunidade.”

Mafê ainda chama atenção para um ponto estrutural pouco discutido: a formação dos próprios profissionais.

“Na minha residência de três anos no HC, eu nunca tive uma aula de sexualidade. Como a gente espera que profissionais comuniquem bem um assunto que não lhes é ensinado?”

Apesar de tudo, os três concordam que ainda há espaço para mudança. E ela começa com mensagens simples, diretas e humanas.

Rico fala diretamente com quem adia a testagem por medo.

“Se tá com medo, vai com medo mesmo. O melhor que você faz na sua vida é se testar, independente do resultado. Saber o resultado é sempre melhor.”

Ao falar da PrEP, ele convida à aproximação.

“É muito mais simples do que você imagina. É uma tecnologia que está revolucionando a prevenção do HIV. Se você acha que pode se beneficiar dela, não foge. Chega perto, aprende mais, e você vai ver que não é nenhum bicho de sete cabeças.”

Mafê encerra retomando o que atravessa toda a conversa.

“A principal mensagem é mostrar uma realidade não associada ao terrorismo. Tá tudo bem ter IST. O que você precisa é saber, testar, tratar e conversar com suas parcerias.”

Fonte: Agência Aids