“HIV no Tribunal” reestreia em São Paulo em apresentação especial no Dezembro Vermelho
O espetáculo “HIV no Tribunal” reestreou na tarde desta quarta-feira (10), em São Paulo, em uma apresentação especial dedicada aos colaboradores da farmacêutica Gilead, como parte das atividades do Dezembro Vermelho — mês de mobilização pelo enfrentamento ao HIV/aids. A nova temporada marca não apenas o retorno da montagem aos palcos, mas também o fortalecimento de uma proposta artística que alia cultura, educação e direitos humanos em um país onde o estigma ainda define acessos, silencia histórias e produz desigualdades.
Criado coletivamente pelo Instituto Cultural Barong e dirigido por Tadeu Di Pietro, o espetáculo provoca o público ao colocar em cena um julgamento ficcional que discute temas urgentes: a criminalização da transmissão do HIV, os impactos do preconceito, a responsabilidade compartilhada na prevenção, a ética do cuidado e o lugar da informação como ferramenta de transformação social.
A reestreia teve ainda um peso simbólico adicional. Além de marcar o início da nova temporada, coincidiu com o Dia Internacional dos Direitos Humanos, reforçando a centralidade do direito à saúde, à dignidade e à informação — pilares que sustentam o espetáculo desde sua criação.

A atriz Rosi Campos, que passa a integrar o elenco nesta temporada como juíza, emocionou o público ao relembrar sua trajetória histórica na luta contra a aids, com o icônico vídeo “Mancha de Batom”, dos anos 1990, e ao destacar como, mesmo diante de tantos avanços, o estigma persiste como uma ferida aberta. “HIV é coisa de humano”, repetiu ela, reafirmando uma mensagem que ecoa há décadas.
Além de Rosi, o elenco é formado por Clóvis Gonçalves, Clodd Dias, Daniel Prata e Lilian Marchetti, que dão vida aos personagens com intensidade, emoção e compromisso social. O espetáculo também conta com participações especiais de testemunhas de acusação e defesa, além de ativistas e profissionais da saúde, fortalecendo o caráter documental e educativo da apresentação.
Julgamento simbólico, debate real
Na dramaturgia, os personagens Bráulio e Eva, vividos por Daniel e Lilian, conduzem o público por um julgamento simbólico que, aos poucos, revela não apenas uma história ficcional, mas camadas profundas de desigualdade, silenciamentos e disputas morais que atravessam a vida real de pessoas que vivem com HIV no Brasil. Eva acusa seu ex-companheiro, Bráulio, de tê-la infectado intencionalmente com o vírus.

Os temas discutidos em cena — transmissão, intencionalidade, responsabilidade, consentimento e violência — ganharam ainda mais força no debate final, mediado pela equipe do Barong.
A fala do advogado Tarcísio de Andrade, consultor jurídico do espetáculo, ajudou a explicitar nuances legais que raramente chegam com clareza ao público leigo. Ele explicou como a responsabilização criminal depende de intenção, dolo e circunstâncias específicas, reforçando que a lei não existe para punir pessoas que vivem com HIV, mas para avaliar situações em que há violência, coerção ou propósito explícito de causar dano. Ao mesmo tempo, lembrou que a prevenção é um pacto ético e individual: “A responsabilidade da prevenção é minha. E é sua. E é de cada um.”
Uma roda de conversa que se transformou em ato político

Ao final da peça, o bate-papo extrapolou o formato tradicional de conversa pós-espetáculo. Tornou-se um espaço de memória e afirmação de direitos.
A coordenação geral, feita pela presidente do Barong, Marta McBritton, abriu o diálogo agradecendo a equipe, a Gilead e as pessoas presentes, e destacou a importância do apoio para que o espetáculo circule por onde realmente importa: periferias, CEUs, escolas públicas e espaços comunitários, onde o acesso à informação ainda é desigual e o estigma também existe.
Ela lembrou o esforço político que garantiu uma emenda parlamentar destinada a levar a peça a pelo menos 20 apresentações em territórios vulnerabilizados. “Aqui, hoje, temos uma plateia extremamente qualificada. Mas é nas periferias que precisamos estar. Mesmo 40 anos depois, esse debate ainda é atual. Há muitos países que criminalizam as pessoas com HIV”
Entre as falas mais marcantes, esteve a da jovem Gugãa Thaylor, de 30 anos, que vive com HIV desde o nascimento. Ela relatou o processo de discriminação que sofreu na adolescência, quando foi impedida de participar das aulas de educação física, e descreveu a tentativa de buscar justiça — passando pela diretoria de ensino, pela Defensoria Pública, por processos administrativos e judiciais — e como, mesmo após vencer parcialmente, voltou a ser silenciada.
“Estar aqui hoje e ver essa discussão acontecendo é lindo. Mas isso tem que chegar nas escolas, nos juízes, nos promotores. Eles precisam ter acesso a esse debate.”
O depoimento trouxe para o centro da cena aquilo que o espetáculo denuncia metaforicamente: o estigma ainda viola direitos diariamente, especialmente quando instituições que deveriam proteger são as que perpetuam a violência.
Em um dos momentos mais simbólicos, o diretor Tadeu Di Pietro explicou por que optou pela linguagem teatral: “Sem conflito não há teatro. E sem conflito não há reflexão. Essa briga que vocês viram aqui não existe na vida real dessa forma, mas ela existe dentro de cada um de nós.”
Entre o palco e a vida real: o poder da arte
O espetáculo reafirma que a arte pode assumir o lugar de ferramenta pública, capaz de mobilizar, educar e sensibilizar. Ao transformar a plateia em júri, “HIV no Tribunal” entrega ao público a responsabilidade de refletir sobre moral, consentimento, autonomia e preconceito — temas que, no mundo real, determinam quem vive com dignidade e quem é empurrado para as margens.
E, como reforçou Tadeu: “Saúde é um direito humano. E dignidade também. E é isso que estamos defendendo aqui.”
A representante da Gilead, Marília Casseb, destacou que o debate provocado pelo espetáculo alcança uma profundidade rara — especialmente para quem vive o cotidiano corporativo: “Quero agradecer profundamente pelo que ouvi aqui hoje. Nem sempre, dentro das empresas, somos estimulados a pensar politicamente. Mas isso não significa que não tenhamos consciência política, ou que não sejamos ativistas. Pelo contrário.”
Ela explicou que a Gilead tem buscado fortalecer diálogos com diferentes segmentos sociais, reconhecendo que a saúde pública é um campo construído de forma coletiva: “Onde quer que a gente esteja — numa empresa, numa escola, numa instituição pública ou dentro de casa — precisamos pensar sobre o que diz respeito à vida das pessoas. No fundo, estamos falando de vida, de direitos, de como cada pessoa quer se ver e ser vista como cidadã. Estamos falando de dignidade. Por isso é tão forte estar aqui hoje.”

A sessão terminou sob aplausos e com a sensação coletiva de que aquele momento transcendeu o formato de um espetáculo. Tornou-se aula, denúncia, testemunho, memória — e também celebração de luta, resistência e humanidade.
Em mais uma temporada, “HIV no Tribunal” segue cumprindo sua missão urgente: gerar debate, reduzir estigmas e levar informação para onde ela ainda não chega. E, como diz o próprio espetáculo, “tudo vale a pena quando a verdade ilumina”.
Fonte: Agência Aids


