Avanço da PrEP injetável, dúvidas sobre DoxiPEP e alerta sobre chemsex marcam encontro da Casa da Pesquisa em São Paulo

Enquanto o lenacapavir desponta como uma das estratégias de prevenção ao HIV mais promissoras já testadas — com eficácia que chega a 100% em alguns grupos —, especialistas reunidos no Teatro Cásper Líbero, em São Paulo, também jogaram luz sobre dúvidas que ainda cercam a DoxiPEP e sobre o avanço do chemsex no Brasil. No encontro promovido pela Casa da Pesquisa, pesquisadores apresentaram dados inéditos debatidos nas IAS e EACS 2025 e discutiram como ciência, comportamento e políticas públicas precisam caminhar juntas para enfrentar uma epidemia que permanece em transformação.

O lenacapavir é um medicamento antirretroviral de ação prolongada que atua como PrEP injetável, oferecendo proteção contra o HIV por meio de duas injeções subcutâneas aplicadas a cada seis meses. Esse intervalo semestral representa um avanço significativo em relação à PrEP oral diária, já que reduz falhas por esquecimento e melhora a adesão ao tratamento preventivo.

Os ensaios clínicos apresentados foram o PURPOSE 1 e o PURPOSE 2, que mostraram, respectivamente, 100% de eficácia do medicamento entre mulheres cisgênero e 96% entre homens, pessoas trans e não binárias. No primeiro, cientistas testaram o remédio injetável em 5,3 mil mulheres cisgênero na África do Sul e em Uganda, com idades entre 16 e 25 anos e sem HIV. O estudo comparou três tipos de prevenção: lenacapavir; emtricitabina + tenofovir alafenamida; e Truvada, PrEP padrão distribuída pelo SUS no Brasil.

Após doze meses, os resultados mostraram que nenhuma das 2.134 voluntárias que receberam lenacapavir contraiu HIV. Entre as 1.068 mulheres que tomaram um comprimido diário de Truvada, 16 contraíram a infecção, enquanto 39 das 2.136 participantes que receberam emtricitabina + tenofovir alafenamida adoeceram.

O estudo PURPOSE 2 contou com a participação de 3.273 homens cisgênero que fazem sexo com homens, além de pessoas trans e não binárias que têm relação sexual com homens. Os resultados novamente mostraram superioridade do lenacapavir em relação à PrEP oral, com redução de 96% no risco de infecção.

“O lenacapavir age na região da NUP153 — componente dos poros nucleares das células —, perturbando a integridade do capsídeo e a ligação ao poro nuclear. Ao bloquear esse processo, o medicamento impede que o HIV se replique, o que mantém a infecção controlada”, explica a Dra. Melissa Soares Medeiros, uma das palestrantes do encontro.

Projetado para ser armazenado no tecido adiposo do usuário, o lenacapavir é liberado lentamente no organismo, garantindo sua ação por até seis meses. Após esse período, é necessária apenas uma nova aplicação para manter o efeito protetor.

“Para além do avanço científico, o lenacapavir também proporciona mais conforto ao usuário. Uma coisa é tomar comprimidos diários; outra é receber duas injeções ao ano. Isso contribui para a saúde mental do paciente”, avaliou a Dra. Ana Caroline Coutinho Iglessias.

Lenacapavir x Cabotegravir

Os estudos apresentados também geraram um debate sobre qual o melhor método de prevenção entre o lenacapavir e o cabotegravir.

Disponível na rede privada no Brasil, o cabotegravir é uma profilaxia pré-exposição (PrEP) injetável aplicada a cada dois meses e considerada mais eficaz do que a PrEP oral. Ensaios clínicos internacionais (HPTN 083 e HPTN 084) comprovaram essa superioridade.

“Estudos mostram que, a partir de sete dias da primeira injeção, o paciente já apresenta efetividade máxima. Apesar disso, recomenda-se que pessoas em situações vulneráveis continuem tomando a PrEP oral por até sete dias após a aplicação inicial”, explicou a Dra. Ana Caroline.

Os estudos também apontam que nenhum dos medicamentos causa grandes efeitos colaterais. Os principais são pequenas inflamações no local da aplicação. No entanto, segundo os cientistas, há tendência de adaptação do corpo às injeções, fazendo com que as inflamações diminuam com o tempo.

A eficácia da DoxiPEP

Outro tema debatido no encontro foi a eficácia da DoxiPEP, que consiste no consumo de doxiciclina após relação sexual desprotegida. Estudos como o DoxyPEP Trial, realizado nos Estados Unidos em 2023, mostraram que tomar 200 mg do antibiótico em até 72 horas após a exposição sexual de risco pode reduzir em até 70% os casos de sífilis em homens que fazem sexo com homens e pessoas trans. O medicamento também foi associado a reduções de incidência de clamídia (74%) e gonorreia (55%).

Apesar dos benefícios em relação à clamídia e à sífilis, a DoxiPEP ainda não é consenso entre especialistas. De acordo com o Dr. Álvaro Furtado da Costa, há dúvidas a serem esclarecidas sobre as incidências registradas.

“Os estudos de Fase 3 indicam um resultado sustentado em prevenção e, consequentemente, na diminuição dos casos de sífilis e clamídia. A questão é que os resultados positivos se concentram em grupos específicos, como homens que fazem sexo com homens e pessoas trans. Entre mulheres, alguns dados ainda são controversos”, avaliou Álvaro.

Em junho do ano passado, o Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos publicou seu protocolo de DoxiPEP, tendo como público-alvo homens gays, homens que fazem sexo com homens, mulheres trans e travestis que fazem sexo com homens, e que tenham ao menos um diagnóstico de IST bacteriana em um intervalo de um ano.

“A gente vive uma explosão de casos de sífilis, clamídia e gonorreia, e ter mais ferramentas de prevenção — além do uso de preservativos — pode ser muito importante. Mas a DoxiPEP vem como método complementar; não substitui o uso de preservativos”, comentou o Dr. Álvaro.

A sindemia entre estigma, preconceito e chemsex

O uso cada vez mais frequente de drogas psicoativas para intensificar relações sexuais — o chamado chemsex — também tem sido motivo de debate entre especialistas em ISTs.

Chemsex é uma abreviação de chemical sex, que significa literalmente “sexo químico”. A prática consiste no uso de drogas — geralmente sintéticas e ilegais — durante o sexo, e surgiu na Europa no fim dos anos 1990. No Brasil, observa-se crescimento desde o fim da pandemia de Covid-19.

De acordo com o Dr. Lucas Rocker Ramos, o conceito não se refere apenas a pessoas que usam drogas psicoativas, mas àquelas que recorrem a essas substâncias com o objetivo específico de intensificar experiências sexuais.

“A busca por relações sexuais mais duradouras é o principal motivo que leva as pessoas a aderirem ao chemsex. É uma prática que vem da pornografia. Ela aumenta a vulnerabilidade às ISTs e possui alto potencial viciante. É uma questão de saúde pública e precisa ser tratada como tal”, analisou.

O especialista também enfatizou que vivemos em uma sociedade que impõe padrões estéticos e pressões sobre desempenho sexual. “Muita gente recorre a esse método em busca do que é considerado ‘desempenho perfeito’, quase sempre influenciado pelos padrões difundidos na pornografia”, disse o Dr. Lucas.

A prática possui concentração significativa entre gays e homens que fazem sexo com homens. Como, em muitos casos, as substâncias consumidas são ilegais, Lucas Rocker defende ampliar políticas públicas de enfrentamento às desigualdades sociais e fortalecer estratégias de redução de danos.

“É necessário reforçar as políticas públicas e ampliar as estratégias de redução de danos”, concluiu.

Fonte: Agência Aids