Advogados apontam violação da lei de proteção de dados e da Constituição em publicação que expôs dados de pessoas com HIV, fibromialgia e anemia falciforme em Feira de Santana

A decisão da Prefeitura de Feira de Santana (BA) de suspender o passe livre de pessoas com fibromialgia, HIV e anemia falciforme gerou forte reação entre movimentos sociais, especialistas em direito e organizações de defesa dos direitos humanos.

A medida foi oficializada na edição de sábado (20) do Diário Oficial do Município, que publicou a Portaria nº 19/2025, assinada pelo secretário de Mobilidade Urbana, Sérgio Barradas Carneiro. O texto cassou o benefício de cerca de 245 pessoas. Além da suspensão do passe livre, o documento expôs nomes e números de cartão dos usuários — o que, segundo juristas ouvidos pela reportagem, configura grave violação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e da Constituição Federal.

A advogada Fernanda Nigro, do Grupo Pela Vidda São Paulo, classificou a divulgação como um atentado contra a dignidade e a privacidade das pessoas afetadas.

“As pessoas que tiveram a sorologia revelada precisam procurar a Defensoria para as providências legais. Quanto à isenção tarifária não consigo encaminhar porque não sei se foi decisão administrativa ou judicial.”

Para especialistas, a publicação não apenas viola a LGPD (Lei nº 13.709/2018), como também fere o artigo 5º da Constituição Federal, que garante a inviolabilidade da intimidade e da vida privada dos cidadãos.

O advogado Claudio Pereira, presidente do Grupo de Incentivo à Vida, destacou que é preciso entender a origem da decisão judicial que motivou a suspensão.

“A suspensão foi em decorrência da revogação de uma tutela de urgência em um processo. Nesse caso, precisamos saber o que foi pedido no processo e o motivo da revogação (a revogação pode ter ocorrido na primeira instância ou em recurso para instância superior). Como exemplo, na cidade de São Paulo, a isenção tarifária para todas pessoas vivendo com HIV/aids é no transporte de ônibus, no metrô e no trem a análise é individualizada.”

A Prefeitura de Feira de Santana alegou, em nota, que a publicação dos dados ocorreu por uma “falha do sistema” e informou que uma nova edição do Diário Oficial será publicada garantindo o sigilo das informações pessoais. Para os juristas, no entanto, o dano já foi causado.

“As pessoas que se sentirem lesadas, por terem sua intimidade revelada, que é garantido pela Constituição Federal, pela Lei 12.984/2014, além da LGPD, podem procurar seus direitos na Justiça tanto pela Defensoria Pública, assim como pelo Ministério Público, ou mesmo por um advogado particular”, completou Claudio Pereira.

Além da questão da privacidade, os advogados alertam para os impactos sociais e discriminatórios que a exposição desses dados pode causar, inclusive no acesso ao trabalho, à saúde e ao transporte das pessoas atingidas.

A análise de Kariana Guérios

Para aprofundar a discussão jurídica, a Agência Aids conversou com a advogada Kariana Guérios, da ONG Gestos, que explicou de forma detalhada os direitos violados, os riscos sociais e os caminhos legais possíveis. Confira:

Agência Aids: A suspensão do passe livre para pessoas com HIV, fibromialgia e anemia falciforme pode ser considerada uma violação de direitos?

Kariana Guérios: A suspensão do passe livre viola direitos fundamentais, porque restringe o acesso ao transporte necessário para tratamentos e deslocamentos de saúde. Isso fere a Constituição Federal, que no artigo 6º reconhece a saúde e o transporte como direitos sociais, e no artigo 196 garante o acesso universal à saúde. A Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015) também assegura o direito à mobilidade sem barreiras. Além disso, a divulgação de listas com nomes de pessoas vivendo com HIV afronta a Lei 14.289/2022, que garante sigilo sobre essa condição, e viola o artigo 5º, inciso X, da Constituição, que protege a intimidade e a vida privada.”

Agência Aids: Existe respaldo legal para que um município retire esse tipo de benefício de grupos vulneráveis?

Kariana Guérios: Depende de como a legislação do passe livre está disposta no município e no Estado. No entanto, cessar o benefício do passe livre para pessoas que se enquadram como pessoas com deficiência, de acordo com a Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015), fere direitos fundamentais. A Constituição Federal garante o direito à saúde e ao transporte (arts. 6º e 196), e a Lei de Inclusão assegura mobilidade sem barreiras.

Agência Aids: Quais caminhos jurídicos essas pessoas podem acionar contra a decisão da prefeitura?

Kariana Guérios: As pessoas afetadas pela suspensão do passe livre e pela divulgação de seus dados podem acionar diversos caminhos jurídicos:

  1. Ação Civil Pública (ACP) – Pode ser ajuizada pelo Ministério Público ou Defensoria Pública para proteger direitos coletivos e difusos, diante da violação de direitos fundamentais e da exposição de dados sensíveis.
  2. Mandado de Segurança Coletivo ou Individual – Para garantir a continuidade imediata do benefício, diante de violação a direito líquido e certo, como o acesso ao transporte e à saúde (CF, arts. 5º, LXIX e LXX).
  3. Ação Ordinária com Pedido de Tutela de Urgência – Para restabelecimento do passe livre, baseada nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal e na Lei 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão).
  4. Responsabilização por Dano Moral Coletivo e Individual – A divulgação da lista de pessoas vivendo com HIV fere a Lei nº 14.289/2022 (sigilo da condição de saúde) e o art. 5º, X, da Constituição (intimidade, vida privada e dignidade), possibilitando pedido de indenização.
  5. Atuação dos Conselhos de Direitos e Órgãos de Controle – O Conselho Municipal de Saúde, o Conselho de Direitos Humanos e a Ouvidoria do Ministério Público podem ser provocados para intervir.

Em resumo, os caminhos vão desde medidas urgentes para restabelecer o benefício até ações mais amplas de responsabilização do poder público pela exposição indevida e discriminação contra grupos vulneráveis.

Lembrar de procurar o Ministério Público e a Defensoria Publica!

Agência Aids: A divulgação de nomes e números de cartão dos beneficiários configura violação da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados)?

Kariana Guérios: Sim. A divulgação de nomes e condições de saúde violam a LGPD – Lei 13.709/2018, que protege dados pessoais sensíveis, como informações de saúde. Além disso, afronta o artigo 5º, X, da Constituição e a Lei 14.289/2022, que garante sigilo sobre a condição de pessoas vivendo com HIV.

Agência Aids: Além da LGPD, que outros dispositivos legais foram feridos com essa publicação?

Kariana Guérios: Além da LGPD (Lei nº 13.709/2018), a publicação de nomes dos beneficiários feriu diversos dispositivos legais:

  1. Constituição Federal
  • Art. 5º, X – garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. A divulgação de dados sensíveis, como a condição de saúde ou números de cartão, fere diretamente esse dispositivo.
  • Art. 6º e 196 – asseguram o direito à saúde e ao transporte como direitos sociais, que são prejudicados pela suspensão do benefício.
  1. Lei nº 12.984/2014
  • Tipifica como crime a discriminação de pessoas vivendo com HIV/AIDS. A exposição pública de beneficiários pode configurar forma de discriminação ou constrangimento por motivo de doença.
  1. Lei nº 14.289/2022
  • Garante sigilo sobre a condição de pessoas com HIV, hepatites crônicas e outras doenças específicas. A divulgação pública viola expressamente essa lei.
  1. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015)
  • Assegura direitos à mobilidade e transporte das pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Suspender o benefício ou expor publicamente os beneficiários cria barreiras e viola o princípio da igualdade e da acessibilidade.

Portanto, a publicação não apenas descumpre a LGPD, mas também afronta a Constituição, leis específicas de proteção à saúde e à dignidade, e normas de inclusão social, configurando múltiplas ilegalidades.

Agência Aids: Quais os riscos concretos para essas pessoas após terem seus dados sensíveis expostos em um documento oficial?

Kariana Guérios: A exposição de dados sensíveis, como nome, condição de saúde (HIV, fibromialgia, anemia falciforme) gera riscos concretos e graves para essas pessoas:

  1. Violação da privacidade e dignidade – O art. 5º, X, da Constituição Federal protege a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem. A divulgação pública desses dados pode gerar constrangimento, estigmatização e discriminação social.
  2. Discriminação e preconceito – Pessoas vivendo com HIV ou com condições de saúde crônicas podem sofrer estigma, exclusão de oportunidades de trabalho, recusa de serviços e isolamento social, em afronta à Lei 12.984/2014, que criminaliza a discriminação por HIV.
  3. Riscos financeiros devido perda de trabalho em função de estigma e preconceito.
  4. Impactos na saúde mental – A exposição e o constrangimento podem provocar ansiedade, depressão e estresse, afetando o bem-estar psicológico e físico das pessoas, prejudicando seu direito à saúde (CF, art. 196).
  5. Quebra de sigilo legal, previsto na Constituição Federal, na LGPD – No caso de pessoas com HIV, a Lei 14.289/2022 garante sigilo absoluto da condição. A violação pode gerar responsabilização civil, administrativa e criminal dos responsáveis.

Em resumo, a exposição de dados sensíveis não é apenas uma falha administrativa; ela coloca a vida, a segurança, a saúde e a dignidade das pessoas em risco concreto.

Agência Aids: O município pode ser responsabilizado civil e criminalmente por esse vazamento?

Kariana Guérios: O município pode ser responsabilizado civil e criminalmente pelo vazamento de dados sensíveis, já que violou a LGPD, o sigilo da Lei 14.289/2022 e a Constituição Federal, além de expor os beneficiários a discriminação e prejuízos, violando direitos fundamentais.

Agência Aids: O que a prefeitura deveria fazer para reparar o dano causado?

Kariana Guérios:  1. Restabelecer imediatamente o benefício

  • Garantir que todos os beneficiários afetados tenham acesso contínuo ao transporte gratuito, fundamental para deslocamentos relacionados à saúde, consultas e tratamentos.
  • Essa medida atende aos direitos constitucionais à saúde (art. 196) e ao transporte (art. 6º) e à Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015).
  1. Retirar imediatamente qualquer divulgação de dados
  • Remover nomes e demais informações pessoais de documentos públicos ou meios de divulgação, protegendo a privacidade e dignidade dos beneficiários (CF, art. 5º, X; Lei 14.289/2022; LGPD).
  1. Adotar medidas de segurança e prevenção
  • Implementar protocolos internos de proteção de dados sensíveis, treinamento de servidores e regras de sigilo.
  • Garantir que políticas públicas sejam transparentes e respeitem a LGPD e os princípios da administração pública (art. 37, CF).
  1. Reparação dos danos morais e institucionais
  • Avaliar a necessidade de indenização aos afetados pelo constrangimento, discriminação e exposição indevida de dados.
  • Comunicar formalmente os beneficiários sobre as medidas adotadas e oferecer canais de acompanhamento e suporte.
  1. Atuação preventiva e educativa
  • Criar campanhas internas e públicas sobre direitos das pessoas com condições de saúde crônicas ou deficiência, prevenindo novos episódios de discriminação ou exposição.

Essas medidas configuram responsabilização administrativa e reparação legal, além de restabelecer a confiança da população no poder público.

Agência Aids: A exposição de dados pode reforçar estigmas e abrir precedentes perigosos em relação ao sigilo de informações de saúde?

Kariana Guérios: A divulgação de dados sensíveis reforça estigmas, viola leis de proteção à saúde e cria precedentes perigosos para o sigilo de informações privadas em geral, inclusive médicas, prejudicando a confiança da população nos serviços públicos em geral.

 

 ” A Prefeitura é o Estado em nível municipal. Tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de sua população, e não de, por ato próprio, violar estes direitos.”

O advogado Marcelo Brito Guimarães, mestrando em Direito Constitucional (PUC-SP) , colaborador externo do NTDADT-USP,  consultor jurídico desta Agência faz uma análise sobre o que aconteceu em Feira de Santana.

 

“A divulgação da condição sorológica de pessoas vivendo com HIV feita pela Prefeitura Municipal de Feira de Santana, na Bahia, é um fato gravíssimo em si mesmo, independentemente da existência de normas jurídicas que proíbem esta divulgação, e cuja responsabilidade deve ser apurada, rigorosamente. Há diversos mandamentos legais, vigentes no Brasil, que foram desrespeitados.

O primeiro deles é a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, da qual o Brasil faz parte desde 1992, que determina, em seu artigo 1º. que o Estado deve comprometer-se a respeitar os direitos e liberdades nela previstos, sem discriminação de qualquer natureza. Neste ponto, portanto, a divulgação responsabiliza a Prefeitura de Feira de Santana.

Nossa Constituição Federal de 1988 traz como seu alicerce fundamentador o princípio da dignidade da pessoa humana. É importante lembrar que, como o próprio nome diz, Constituição é o que constitui algo. É a união dos elementos que se agregam para constituir algo. Na nossa Constituição Federal, assim como em outros países, como, por exemplo, Alemanha e Portugal, dentre outros, fundamenta-se no princípio da dignidade da pessoa humana. É este o princípio norteador da constituição da sociedade brasileira. É a dignidade da pessoa humana que constitui nosso país.

A Constituição Federal brasileira determina que o Estado deve garantir os direitos humanos das brasileiras e brasileiros, e, ao mesmo tempo, prevê outros direitos da população para se protegerem contra os arbítrios do Estado. E é este ponto que o ato da Prefeitura de Feira de Santana é condenável. A Prefeitura é o Estado em nível municipal. Tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de sua população, e não de, por ato próprio, violar estes direitos.

A Constituição Federal foi violada nos princípios da dignidade da pessoa humana, do respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem e esta violação gera a possibilidade de indenização por danos morais e materiais, previstos no artigo 5º. inciso X.

O desrespeito dos direitos das pessoas vivendo com HIV também gera outras modalidades de responsabilidade jurídica. Além da indenização por danos morais e materiais, há, em tese, a possiblidade de enquadramento da conduta violadora na Lei n. 12.984, de 2014, tendo sido a importância do sigilo de tal condição reforçada pela Lei n. 14.289, de 2022.

E, finalmente, há também a possibilidade da responsabilidade administrativa dos agentes públicos da Prefeitura de Feira de Santana pelo ato praticado, que também deve ser apurada. Seja como for, é de suma importância ter-se em mente que o Estado, por meio de seus diversos entes jurídicos (União, Estados e Municípios) têm o dever de garantir e respeitar os direitos humanos da população brasileira, e não atuar como agentes violadores destes direitos, como ocorreu nesta situação.”

Serviço — Onde buscar ajuda jurídica em Feira de Santana

Defensoria Pública da Bahia

📧 E-mail: 1regional.feiradesantana@defensoria.ba.def.br

📍 Endereço: Av. Maria Quitéria, nº 1.235, Centro, CEP: 44.001-970

📞 Telefones: (75) 3614-6963 / 3614-8355

⏰ Horário: 08h às 12h, 14h às 16h

Defensoria Pública da União (DPU)

📍 Endereço: Av. Maria Quitéria, 1977 – Ponto Central, Feira de Santana – BA, 44075-005

📞 Telefone: (75) 99284-0010

⏰ Horário: 08h–11h, 13h30–17h

 Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA)

📍 Endereço: Av. Getúlio Vargas, 1337 – Santa Mônica, Feira de Santana – BA, 44075-432

📞 Telefone: (75) 3622-5656

⏰ Horário: 08h–12h, 14h–18h

 Ministério Público Federal (MPF)

📍 Endereço: R. Castro Alves, 1560 – Centro, Feira de Santana – BA, 44001-184

📞 Telefone: (75) 3211-2000

⏰ Horário: 12h–18h

Fonte: Agência Aids