Pesquisa brasileira revela resistência do dolutegravir em indivíduos em primeira linha de tratamento
Nos últimos anos, o dolutegravir (DTG) tornou-se peça central no tratamento do HIV em diversos países, incluindo o Brasil. Trata-se de um inibidor de integrase de segunda geração, altamente eficaz, com rápida ação antiviral e uma barreira genética elevada — ou seja, é mais difícil para o vírus desenvolver resistência a ele. Justamente por essas características, o DTG foi incorporado como esquema preferencial de primeira linha no SUS, sendo hoje utilizado por mais de 94% das pessoas em tratamento antirretroviral no país.
No entanto, um alerta acende a necessidade de vigilância: um relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em março de 2024, revelou um aumento preocupante nas taxas de resistência ao dolutegravir em alguns países, especialmente entre pessoas que vivem com HIV e não alcançam supressão viral. O estudo da OMS reforça o que pesquisadores e profissionais de saúde vêm observando: mesmo medicamentos potentes como o DTG precisam de monitoramento contínuo para garantir sua eficácia a longo prazo.
É nesse contexto que um grupo de pesquisadores brasileiros, Universidade Federal de Minas Gerais, realizou o primeiro estudo de vida real no país sobre resistência ao dolutegravir em pessoas que nunca haviam iniciado tratamento. Com base em uma ampla análise farmacoepidemiológica, o estudo avaliou dados de três grandes bases nacionais e traz evidências importantes sobre o surgimento de mutações de resistência em um cenário de uso ampliado do DTG no Brasil.
Para entender melhor os objetivos, achados e implicações desse trabalho, conversamos com o farmacêutico e sanitarista Igor Francisco Chagas dos Santos, pesquisador e um dos autores do estudo. A seguir, você confere os principais destaques da pesquisa e as perspectivas para o cuidado das pessoas vivendo com HIV/aids. Confira:
Agência Aids: Poderia nos explicar, de forma objetiva, qual foi o escopo e o principal objetivo do estudo realizado?
Igor Francisco: Nosso estudo é uma análise farmacoepidemiológica do desenvolvimento de mutações de resistência ao Dolutegravir (DTG), inibidor de integrase de segunda geração utilizado no tratamento e prevenção de pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA). Avaliamos características sociodemográficas, clínicas e imunovirológicas em uma perspectiva do cuidado de pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA), no Brasil. E teve como objetivo analisar a frequência de mutações de resistência viral à integrase (IN) em PVHA que iniciaram TARV com um regime contendo DTG e que foram submetidas à genotipagem após o início do tratamento.
Agência Aids: Por que o dolutegravir foi selecionado como foco central da pesquisa? Qual é a sua relevância no atual cenário terapêutico das pessoas vivendo com HIV no Brasil?
Igor Francisco: O dolutegravir (DTG) foi escolhido porque ele é o esquema de primeira linha em combinação com tenofovir mais lamivudina (3TC+TDF/DTG) utilizado para o tratamento de pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA) que estão iniciando o tratamento, no Brasil. O DTG é altamente eficaz, com alta potência e elevada barreira genética para o desenvolvimento de resistência aos medicamentos. O foco no DTG é porque, em 2022, 731.000 PVHA estavam recebendo TARV no país, das quais 94,4% utilizavam 3TC+TDF/DTG.
Pensando que esse esquema foi incorporado recentemente no SUS, em 2016, e cada vez mais pessoas tem o utilizado, é importante ter o conhecimento do perfil dessas pessoas e como podemos realizar a correta vigilância em saúde em relação a esses medicamentos e também as mutações de resistência que podem vir a comprometer a atividade do medicamento. Nesse sentido, o impacto para a vida desses pacientes é enorme. Os resultados fornecem contribuições valiosas para as PVHA, especialmente para aquelas cujo tratamento é baseado em DTG.
Agência Aids: O estudo que você conduz é o primeiro em contexto de vida real no Brasil a investigar a resistência ao dolutegravir entre pessoas que nunca haviam iniciado tratamento. O que torna essa abordagem tão inovadora e necessária?
Igor Francisco: Nosso estudo é inovador por investigar, em um contexto de vida real e em larga escala, no Brasil, a ocorrência dessas mutações em indivíduos em primeira linha de tratamento. Os dados mais recentes disponíveis, majoritariamente são de ensaios clínicos ou em indivíduos já com exposição prévia à TARV. Ao analisar esse perfil, podemos identificar os indivíduos com maior risco de resistência e principalmente, como nós profissionais de saúde podemos realizar ações para minimizar essas resistências. Por exemplo, ao identificamos uma carga viral não suprimida em indivíduos utilizando o DTG, pode ser um sugestivo de uma adesão não ideal, mas também uma mutação associada à resistência. Ou seja, ao detectar a falha virológica, é necessário realizar uma intervenção imediata, para mitigar a propagação e desenvolvimento dessas resistências.
Agência Aids: Como foi estruturado o delineamento metodológico do estudo? Quais foram os principais desafios enfrentados durante a concepção e execução da pesquisa?
Igor Francisco: Este é um estudo de coorte retrospectiva que incluiu PVHA em primeira linha de tratamento iniciando TARV com o regime preferencial (TDF/3TC/DTG) entre janeiro de 2017 e dezembro de 2019, que realizaram teste de resistência genotípica pelo menos 12 semanas após o início da TARV. A maior dificuldade na pesquisa é que lidamos com dados administrativos, cedidos pelo Ministério da Saúde os dados ao Grupo de Pesquisa em Estudos Avançados em Farmacoepidemiologia de Doenças Infecciosas (GEADIC). Tivemos algumas variáveis, tipo as imunovirológicas com muitos dados “missing”. Por se tratar de dados secundários, a incompletude dessas variáveis impossibilita realizar as análises.
Agência Aids: A análise utilizou dados provenientes de três grandes bases nacionais. Quais são essas bases e como a integração entre elas fortaleceu a robustez da pesquisa?
Igor Francisco: Os dados foram obtidos de três bases de dados de sistemas de informação nacionais: o Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (Siclom), o Sistema de Controle Laboratorial de Contagem de Linfócitos CD4+/CD8+ e Teste de Carga Viral do HIV (Siscel) e o Sistema de Controle de Teste Genótipo (Sisgeno). Todos os indivíduos são anonimizados, respeitando a LGPD e então geramos um ID para cada um deles. Sendo assim, conseguimos realizar um linkage em cada um dos bancos de dados e verificar se realmente o indivíduo com dispensação no Siclom tem registro de genotipagem no Sisgeno.
Agência Aids: Quais foram os principais achados relacionados à resistência ao dolutegravir?
Igor Francisco: No nosso estudo, identificamos 30 indivíduos (7,0%) com resistência ao dolutegravir (DTG), conforme registros do Sisgeno. Esses indivíduos apresentaram mutações maiores e acessórias associadas especificamente ao DTG, que, embora tenham sido detectadas em baixa proporção, são clinicamente relevantes do ponto de vista da saúde pública. A despeito da alta barreira genética do DTG à resistência, nossos resultados reforçam a importância do monitoramento contínuo dessas mutações e da investigação de seus determinantes clínicos. Ressalta-se que, mesmo diante do surgimento de resistência, o DTG permanece altamente eficaz no tratamento do HIV, com mais de 90% dos pacientes alcançando supressão viral sustentada quando aderem adequadamente ao tratamentos. Os achados deste estudo podem contribuir para o fortalecimento das estratégias de manejo clínico com DTG em PVHA, além de subsidiar políticas públicas nacionais e internacionais voltadas ao enfrentamento da epidemia.
Agência Aids: Entre os resultados, algumas mutações como N155H e E138K foram mais recorrentes. Qual a implicação clínica dessas mutações e por que elas merecem atenção especial?
Igor Francisco: Inicialmente, foram identificados 202.607 indivíduos no Siclom. Destes, 167.438 iniciaram esquemas contendo Tenofovir, Lamivudina e Dolutegravir (TDF/3TC+DTG). Desses, 1.050 (0,63%) tinham registro de realização de genotipagem no Sisgeno, dos quais 430 fizeram o exame após 12 semanas do início da terapia – critério adotado para inclusão na análise de resistência.
Identificamos mutações maiores e acessórias em combinação em todos os 30 (7,0%) indivíduos com resistência ao DTG. A identificação das mutações maiores como N155H, R263K, G118R tem grande redução na atividade antiviral. Essas mutações sozinhas ou em associação podem comprometer a atividade antiviral medicamento. Na prática clínica quando identificamos essas mutações após a correta leitura do exame da genotipagem, pode ser necessário ajustar a dose, ou incorporar um esquema de resgate. Por isso é importante conhecer quais mutações já estão circulando, para compreender o comprometimento ao medicamento e propormos estratégias terapêuticas mais efetivas, com o objetivo de melhorar a resposta virológica e a qualidade de vida das PVHA.
Agência Aids: O estudo identificou um perfil específico entre os indivíduos que apresentaram mutações. Como você interpreta esse recorte sociodemográfico?
Igor Francisco: A observação de maior frequência de mutações de resistência entre homens da região sudeste, autodeclarados brancos, entre 30 a 39 anos, com uma média de 8 a 11 anos de estudo, com carga viral superior a 100.000 cópias/mL reforça a importância do monitoramento contínuo da efetividade do tratamento antirretroviral à medida que o uso do dolutegravir (DTG) aumenta. Esses achados sugerem que determinados perfis clínicos e sociodemográficos podem estar mais suscetíveis ao desenvolvimento de resistência, o que demanda atenção específica. A correta caracterização desses grupos é essencial para que profissionais médicos e farmacêuticos possam adotar estratégias individualizadas e eficazes, tanto na escolha do regime terapêutico quanto na condução do cuidado clínico. Além disso, esse conhecimento contribui para o fortalecimento de políticas públicas de saúde voltadas à prevenção da falha virológica e à promoção de uma resposta terapêutica sustentada entre pessoas vivendo com HIV/aids.
Agência Aids: A adesão ao tratamento foi um dos aspectos avaliados. Qual a relação observada entre a adesão e o surgimento de mutações de resistência?
Igor Francisco: Observou-se que aproximadamente metade dos indivíduos em início de TARV apresentou adesão considerada ideal. No entanto, uma proporção expressiva apresentou adesão não ideal, o que acende um sinal de alerta. Essa adesão piora nos três meses anteriores ao exame de genotipagem. A adesão irregular, caracterizada por interrupções no uso da medicação ou pela perda de doses sucessivas, favorece a ocorrência de pressão seletiva, criando um ambiente propício para a seleção de mutações que conferem resistência viral. Diante disso, a orientação adequada quanto à importância da adesão ao tratamento é imprescindível. Além disso, a identificação precoce de falha virológica deve ser prontamente seguida por intervenções clínicas, conforme orientam os protocolos nacionais, visando evitar o acúmulo de mutações e preservar as opções terapêuticas disponíveis.
Agência Aids: Vocês identificaram mutações associadas não só à integrase, mas também a outras classes de antirretrovirais, como ITRN e ITRNN. O que isso nos mostra sobre os desafios no cuidado dessas pessoas?
Igor Francisco: Desde o início da epidemia de HIV/aids, os inibidores da enzima da transcriptase reversa têm sido a base dos esquemas antirretrovirais. Em PVHA em uso de esquemas contendo DTG que não alcançaram supressão da carga viral, observa-se o surgimento de mutações de resistência às classes ITRN e ITRNN. Relatórios recentes indicam que um número crescente de países está atingindo o limite de 10% de resistência pré-tratamento aos inibidores da transcriptase reversa não análogos de nucleosídeos (ITRNN). Além disso, pessoas com exposição prévia a antirretrovirais apresentam uma probabilidade três vezes maior de desenvolver resistência a essa classe. Quando os medicamentos ITRN perdem a eficácia, o DTG acaba atuando, na prática, em monoterapia — o que favorece o surgimento de mutações de resistência também ao DTG. Esses achados reforçam a urgência da transição para esquemas contendo DTG em países que ainda utilizam esquemas baseados em ITRNN.
Agência Aids: Apesar dos achados, o estudo reforça a segurança do dolutegravir como terapia de primeira linha. Por que essa reafirmação é tão importante?
Igor Francisco: Identificar essas resistências é ir de encontro com as recomendações da OMS com a correta vigilância da resistência aos medicamentos antirretrovirais entre recém-diagnosticados com HIV, sem tratamento prévio. O estudo demonstra que a utilização do DTG em esquemas de primeira linha não induz resistência aos IIN em larga escala, dada a baixa proporção de resistência encontrada. Os resultados confirmaram a alta capacidade do DTG de impedir o desenvolvimento de mutações — conhecida como barreira genética elevada — ou seja, é difícil o vírus criar resistência ao medicamento.
Agência Aids: Você comentou que muitos dos casos de mutações relevantes à integrase envolveram pessoas que haviam usado raltegravir, especialmente em contextos como gestação ou coinfecção HIV-TB. Como esse histórico de uso impacta a interpretação dos dados?
Igor Francisco: O DTG foi incorporado em 2016, e no início do uso do medicamento no Brasil não tínhamos pesquisas específicas que garantiam a efetividade desse medicamento na gestação ou coinfecção HIV-TB, ao longo dos anos que as portarias do Ministério da Saúde foi ampliando cada vez mais a segurança do ARV, mais, para mulheres em idade fértil, grávidas, crianças e coinfecção HIV/TB. Para essas pessoas, era preconizado o uso do raltegravir (RAL) um inibidor da integrase de primeira geração.
A substituição do DTG pelo RAL era uma prática anteriormente adotada durante, mas que não é mais recomendada pelos protocolos atuais. Para os indivíduos que utilizaram RAL e vão transicionar para o DTG, devemos realizar a correta orientação, já que a maioria dos indivíduos com mutações relevantes no gene da integrasse no nosso estudo, havia utilizado RAL em algum momento.
Agência Aids: Esse estudo tem potencial para impactar políticas públicas ou diretrizes clínicas?
Igor Francisco: Sim, os achados podem orientar profissionais de saúde no fortalecimento do uso do DTG e subsidiar políticas públicas de saúde no Brasil, quanto a nível global.
Agência Aids: Quais são os próximos passos previstos para a continuidade da pesquisa? Há intenção de ampliar a análise ou explorar novos marcadores?
Igor Francisco: Meu desejo, caso o acesso os dados sejam disponibilizados, é realizar expandir a investigação de mutações associadas à resistência aos antirretrovirais usados no tratamento e prevenção, no Brasil. Quero me especializar cada vez mais nessa área.
Agência Aids: Qual a importância de divulgar amplamente os resultados deste estudo para além da comunidade científica?
Igor Francisco: É fundamental conscientizar que as mutações de resistência podem surgir, especialmente em situações de baixa adesão ao tratamento. Como profissional farmacêutico e sanitarista, o papel do SUS vai além de incorporar e ampliar o acesso aos antirretrovirais. Precisamos também fortalecer a testagem e o rastreio de outras infecções sexualmente transmissíveis (IST), ampliar o uso e o acesso aos testes de carga viral, além de garantir a rápida troca de regime em casos de falha terapêutica confirmada e a genotipagem pré-tratamento. No entanto, é igualmente essencial sensibilizar os usuários, mesmo com todas as inovações tecnológicas disponíveis para a prevenção e o tratamento do HIV/aids no Brasil, a eficácia desses recursos depende do uso correto e contínuo dos medicamentos.
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Fonte: Redação da Agência de Notícias da Aids